Missa Negra – Da blasfêmia ao psicodrama

Fonte: Arquivo pessoal

Historicamente, é difícil termos outro ritual tão intrinsecamente ligado ao satanismo quanto a Missa Negra no imaginário popular. As lendas urbanas disseminadas ao seu respeito pela Igreja Católica em sua caçada aos hereges e desviantes misturava em si práticas que fossem consideradas chocantes aos ouvintes da época a narrativas antissemitas clássicas. Entre cruzes invertidas e o uso profano de hóstias temos nelas as clássicas acusações de blood libel, incriminações falsas feitas por cristãos contra judeus que tinham por objetivo os culpar de usar sangue cristão em seus rituais, na ideia de que satanistas roubavam crianças não batizadas para usarem seu sangue e sua gordura em seus ritos. Afinal, nunca faltou, por parte da Igreja, o anseio obsessivo de acusar aqueles que ela colocava no papel do outro os crimes que ela mesma propagava de inversão dos símbolos religiosos de outras culturas contra as quais ela antagonizava e da tortura e do rapto de incontáveis adultos e crianças em suas campanhas genocidas ao redor do mundo sob o falso manto de estar levando uma mensagem de paz e de amor.

Contra ela, até a perca de poder progressivo que ela sofreu ao longo dos anos, muitos movimentos e nomes se ergueram. E, para difamar esse nomes, ela sempre levantou os piores boatos do quais foi capaz. Criando medo para controlar as pessoas através do pânico social no qual ela se especializou através dos séculos. Como já mencionado no texto introdutório Satanismo – Um breve resumo histórico, a demonização de tudo que contra ela se levantasse e a eleição de inimigos contra os quais jogar a opinião pública sempre foram os métodos mais queridinhos de controle e manipulação de massa usados pela Igreja Católica e pelo cristianismo num geral até os dias de hoje. E algumas figuras, de certa forma, souberam usar desse imaginário criado pela Igreja de uma melhor forma que outras. As vezes, até mesmo o capitalizando. Afinal, se contam uma mentira sobre você e sobre pessoas como você, por qual motivo você não a usaria ao seu favor tendo o dinheiro e o capital social certo a sua disposição?

Esse parece ter sido exatamente o caso de Catherine Deshayes, conhecida popularmente como Madame Voisin, ou La Voisin. Tendo sido um dos maiores nomes do Caso dos Venenos, que causou um baita rebuliço dentro da corte francesa entre 1670 e 1682, Catherine soube se manter por anos de forma muito próspera dentro dos altos círculos sociais franceses vendendo de venenos a drogas, além do disponibilizar de serviços que incluíam de abortos a encantamentos para os mais diversos fins. É dela, e do processo do seu julgamento que culminou na sua execução em 1680, que temos os relatos históricos mais confiáveis de Missas Negras reais, performadas para a elite francesa e com a participação de padres amistosos a causa, como expressões de um anti cristianismo herético e socialmente subversivo.

Muito longe das malévolas bruxas campestres que a Igreja gostava de pregar no imaginário popular, o mais próximo que tivemos historicamente das Missas Negras provieram de pessoas de alto status social e de participantes do clero que tinham os acessos e a blindagem social oportuna para realizarem suas fantasias com discrição, liderados por uma figura que sabia pegar as fantasias criadas pela Igreja e as usar astutamente dentro dos círculos que frequentava para seus próprios fins. Mesmo após sua execução, a figura de La Voisin continuou rendendo para seus inquisidores uma verdadeira infinidade de material anti herético onde eles deitaram e rolaram. Afinal, o nome dela colocou de forma mais substancial a existência das Missas Negras no mapa, e a máquina de boatos e medos da Igreja pode funcionar a todo vapor, aumentando mil pontos a cada conto.

Anos depois, durante a década de 60, todo esse repertório cultural e histórico foi reaproveitado de forma igualmente astuta por Anton Szandor LaVey nas fundações da sua Church of Satan. Mesmo que, com o tempo, LaVey tenha deixado de performar sua versão moderna da Missa Negra, ele ainda a inseriu em seu livro The Satanic Rituals para ser executada por aqueles que sentirem que dela precisam para expressarem sua rebelião, e sua oposição a Igreja. Através dela, causando em si mesmos uma quebra definitiva contra os dogmas cristãos. E isso, aqui, é importante de ser frisado. Enquanto o foco das Missas Negras, em seu contexto mais histórico, focava muito mais na blasfêmia, o contexto moderno dado por LaVey a elas é essencialmente o do psicodrama que visa a libertação de seus participantes dos medos, das culpas e do poder que os símbolos cristãos podem infligir mesmo naqueles que já se afastaram de seus domínios.

Tenha em mente que a definição de psicodrama com a qual aqui trabalhamos é a da atividade em grupo na qual seus integrantes desempenham diferentes papéis na dramatização de uma situação com forte carga emocional e a de blasfêmia é a de atos injuriosos contra o nome de um deus ou religião que visam quebrar laços com estes de forma irreversível. No caso da Missa Negra de LaVey, a dramatização é a inversão do ritual da Missa Tridentina, onde a morte de Cristo se dá sem a sua ressureição e com a profanação de sua liturgia, instrumentos e crenças. Ela foi esquematizada para, inicialmente, puxar a carga e as energias cristãs para si para que, logo em seguida, elas sejam alteradas até sua destruição através do sacrilégio. Purgando seus participantes a cada ato e invertendo a dinâmica de poder cristã, tirando-o das mãos do divino e da Igreja e a devolvendo as mãos das pessoas.

Tendo isso em mente, tudo que é performado durante uma Missa Negra moderna visa sempre essa inversão para fins de libertação mental e emocional e elas devem ser performadas apenas para dar vasão a necessidade psicológica dos participantes de renegarem seus prévios laços com o cristianismo através da catarse por ela proporcionada. Sua fantasia deve ser utilizada no único sentido atribuído por LaVey aos verdadeiros ritos satânicos, o de se entrar em um estado subjetivo e livre que facilite aos seus participantes se expressarem e processarem emocionalmente o que preciso for para sua libertação. Para a catalisação da mudança. Sem este foco estabelecido de forma clara, o rito se transforma em apenas uma performance teatral que pode até entreter, mas não terá sua finalidade essencial respeitada ou manifestada.

É importante frisar também que, em The Satanic Rituals, LaVey deixa claro que os papéis ocupados durante a realização das Missas tem como foco a representação do princípio dualista das polaridades ativo/passivo para além dos estereótipos que temos em papéis de gênero. Mulheres podem perfeitamente desempenharem como sacerdotisas na falta de um homem para o papel de padre, desde que elas estejam confortáveis em representar o princípio ativo do rito. Inclusive, é tido como muito mais fluido para o bom andamento deste ter uma mulher forte e de energia projetiva o conduzindo do que um homem tímido e de energia introspectiva. Grupos formados apenas por mulheres ou apenas por homens, incluindo aqui a presença possível de pessoas trans, podem, ainda sim, performarem com sucesso a Missa desde que os papéis sejam executados por pessoas de personalidade e energia adequada a cada um deles.

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