As Ordálias e a natureza do Caminho

Fonte – Arquivo pessoal

Se existe um ponto espinhoso na maior parte dos caminhos espirituais esse ponto são as ordálias. A concepção original do termo vem das antigas provas judiciárias onde a intervenção divina era usada para se determinar a culpa ou a inocência de um acusado. Este acusado poderia ser exposto a diversos tipos de tortura ou provas físicas, como andar sobre um caminho feito de carvões acesos em brasa, por exemplo, sendo considerado inocente caso saísse sem qualquer dano ou ferimentos. Com a intervenção divina também podendo ser atestada através de manifestações específicas da natureza durante o processo.

Seu uso, compreensivelmente, foi sendo deixado de lado com o passar tempo. Afinal, nele tínhamos a busca constante pelo milagre em situações onde ele não era de fato preciso. Tentar forçar compulsoriamente uma manifestação espiritual nunca foi e nem nunca será é a melhor forma para se decidir nada judicialmente.

Agora, deixando a parte forense e o que é de ordem mundana e prática de lado, o termo nunca de fato desapareceu do seu local mais apropriado, que é o religioso em si. Sendo usado também dentro do ocultismo para indicar as provações críticas aos quais seus adeptos são expostos ao longo de seus desenvolvimentos. Dentro das vertentes da Mão Direita a conotação de juízo divino se mantém praticamente como na concepção original. Não é o meio que testará o adepto, nem mesmo seus superiores ou professores, mas sim o componente divino. E, dentro dos caminhos da Mão Esquerda, esse componente tende a ser, naturalmente, infernal e adversarial. Sendo aqui que a nossa conversa, neste texto, realmente começa.

Temos as ordálias sendo mais abordadas dentro das Ordens, onde temos toda uma estrutura para nos ajudar a dar forma as nossas jornadas. Mas eu não poderia fazer um Guia sem falar delas, sem falar das provações do Caminho. Pois nem todo mundo tem as condições de se filiar a uma Ordem bem estruturada e responsável para aprender sobre elas em um ambiente seguro e regrado, tendo o auxílio necessário para as vencer e para aprender a como lidar com elas.

Nós nem sequer temos Ordens de Esquerda para isso em cenário nacional ainda, na verdade. A estrutura que temos, em cenário brasileiro, é muito mais ampla e bem desenvolvida em relação a Mão Direita do que em relação a Esquerda. Talvez um dia isso mude, mas agora, a maioria de nós é praticante solitário por sermos um meio que ainda tem muito o que desenvolver. A gente se vira com o que tem, faz o que pode, e se vira como dá. Então, que eu seja a figura que vai falar sobre.

Pois incrivelmente não foram as Ordens e as figuras sacerdotais que eu tive nos anos e anos em que eu estive na Mão Direita, com toda sua estrutura e com tudo aparentemente “certinho”, que me ensinaram a lidar com ordálias. Aqueles que realmente me ensinaram, me estruturaram e me auxiliaram em relação a elas foram justamente os infernais.

O Caminho Tortuoso

Por toda a minha jornada, meus passos sempre foram por trilhas mais escuras do que a das pessoas ao meu redor, nos meios dos quais eu participei. Todas as divindades e figuras espirituais que vieram até mim desde o começo sempre foram as ligadas a guerra e a morte. Desta forma, meu caminho sempre possuiu energias mais densas e provas mais secas do que as da maioria. E eu não recebia suporte no nível em que eu realmente precisava. Aliás, como novato, eu não tinha nem sequer parâmetros para discernir qual era o nível de suporte de que eu realmente precisava. Eu só fui perceber o quanto eu fui desamparado anos depois. Depois de ter minha vida totalmente destruída e não ter tido ninguém para me ensinar a como me reconstruir. E eu perdi literalmente tudo mesmo, eu cheguei em um nível em que nem onde morar eu tinha mais e se eu não tivesse amigos para me abrigar na sala deles enquanto tentava me virar eu teria ido pra rua e muito provavelmente jamais me recuperado. Não estaria nem aqui mais.

E isso aconteceu comigo fazendo tudo dentro de estruturas de Mão Direita. Enquanto todas minhas divindades me chamavam para adentrar a Mão Esquerda e eu aceitava apenas estudar sobre, usando uma ou outra coisa, mas nunca indo de fato para ela pelo tanto de propaganda negativa que eu ouvia e pelas vivências negativas que eu já estava tendo. Eu não queria sair de um caminho que já estava difícil para outro que todos diziam que iria ser pior ainda. Ninguém em sã consciência iria querer isso. Mas o tempo, e a sabedoria das figuras divinas que me guiaram, me fizeram virar a Esquerda (para valer, não mais apenas flertando com) no momento apropriado. Eu já estava mais velho, mais calejado, já sabia me orientar diante do caos, e em pouquíssimo tempo a tempestade que eu já esperava ao invés de me puxar para baixo me impulsionou para cima pela primeira vez em quase uma década. Foi ali que eu parei de me afogar e comecei a nadar.

Em primeiro lugar, isso se deu sim pela experiência que eu já tinha adquirido na marra sobre como estruturar o básico. E eu coloco esse básico aqui. Leve-o extremamente a sério. O Guia tem textos sobre como estudar, sobre como identificar discurso nazi e facho enquanto você procura por livros e fontes, sobre como identificar grupos abusivos e falsos mestres para não cair em armadilhas e sobre como organizar uma prática inicial com cuidado. É só acessar.

Em segundo lugar, isso também se deu porque, pela primeira vez, eu parei de negar minha própria natureza e aceitei ser envolvido por um Caminho que era de acordo com ela e não contra. Então, a partir disso, minha jornada passou a ser real e profundamente um exercício de amor, de cuidado e de respeito que eu expresso por mim mesmo. E esse é o ponto central que muitas pessoas perdem.

Ambas as Vias, dentro do ocultismo, são caminhos espirituais extremamente sérios de desenvolvimento e de aprimoramento pessoal. O foco, em ambas, é a lapidação interna de seus adeptos. E, enquanto isso já é mais bem compreendido em relação a Direita, as pessoas ainda enxergam a Esquerda através de um viés assustadoramente pejorativo. Como se ela fosse apenas um meio para se conquistar poder terreno e dar vazão as próprias perversões e maldades ao invés de ser um caminho de evolução real e legítimo. A percepção do senso comum ainda é de que é apenas na Mão Direita onde existe evolução e aprimoramento pessoal, sendo a Esquerda algo para se flertar apenas num viés utilitário. Para se ter dinheiro, para se conquistar o amor do outro, para se vingar e por aí vai. Mas ambas são Vias de evolução.

E nenhuma evolução, em ambos os lados, acontece sem esforço. Sem provações. Sem sacríficos. A lapidação acontece sempre através da dor e do fogo, independentemente da Via. Mudando apenas a direção para onde você está se orientando, como já foi colocado aqui.

E, em questão de natureza e de lapidação interna, existem pessoas para ambos os Caminhos. Existem pessoas cuja natureza e os objetivos são alinhados a Direita. E existem pessoas cuja natureza e os objetivos são os da Esquerda. Se existem diversos Caminhos, é porque também existe diversidade no universo e em nós e isso nunca foi e nem nunca será algo negativo em nenhum nível. Você só saberá qual caminho é o certo para você conhecendo a si mesmo. Nisto, estude. Estude muito. Estude de tudo. E teste, experimente, viva as coisas que você sentir que precisar viver. As respostas vão te encontrar se você estiver em movimento atrás delas, ao invés de ficar parado apenas gastando energia mental pensando sobre. Se você quiser um pouco de ajuda eu ofereço um exercício aqui, e um jogo oracular específico que você pode testar aqui também.

Só cuidado para não ficar, assim como eu fiquei, por anos e anos com a respostas sendo passadas insistentemente sobre onde era o meu verdadeiro lugar por todos que me guiavam mas receando ir por causa da pressão dos outros. Se falarem para você que não existe evolução na Esquerda, que os daemons só vão querer seu mal o tempo todo, e que figuras infernais só vão te afundar na vida mande tomar no cu sem cerimônia alguma.

Agora que já acertamos aqui que a Mão Esquerda é sim um caminho evolutivo sério e que provações e ordálias naturalmente fazem parte do processo dela assim como fazem parte da Direita também, vamos para a próxima parte.

A Chama Negra

Quando falamos que um Caminho evolui algo, ele evolui o quê, de que forma, e para qual finalidade?

Evoluir é mudar. É cruzar gradualmente o espaço entre um determinado estado para outro, diferente do primeiro. É se transformar. E, na Mão Esquerda, o que é evoluído vai para além da nossa alma, que é o nosso espírito presentemente encarnado, indo diretamente para o cerne do espírito, que é o grande mistério que existe sobre nós e permanece existindo para além de qualquer uma das nossas encarnações. Neste cerne é onde se encontra a substância dos nossos espíritos em sua fagulha mais pura, é onde temos a fonte e a natureza da nossa existência. E é nessa fagulha que comumente dizemos, em diversas vertentes da Mão Esquerda, que é onde reside a Chama Negra.

Ela é a ideia de que aqueles que verdadeiramente são da Mão Esquerda o são no cerne mais puro e profundo das suas existências e de que, se você separar o espírito de um de seus adeptos de seu corpo, tirando-o do plano físico, e o dissecasse, no seu núcleo o que o habitaria seria uma chama de puro fogo negro, parte da natureza do próprio Adversário. Como se essa chama fosse uma gota do oceano que a própria Corrente do Adversário é, sendo todos seus adeptos partes do que a constitui em sua totalidade. Nesta concepção, nascemos sendo, cada um de nós, partes do Adversário. Assim sendo impossível nos “tornamos” de Mão Esquerda, mas sim apenas nos lembrarmos de que já o somos. Nos reencontrarmos com a nossa própria natureza. Voltarmos para o lar, voltarmos a nós mesmos. A Chama Negra é a dádiva do Adversário dentro de cada um de nós, não podendo ser retirada visto que é a nossa própria essência, mas sim podendo ser continuamente aprimorada no processo que chamamos de auto deificação.

Onde nos desfazemos de tudo que não é realmente nosso e alinhado a nossa verdadeira essência para nos retificamos da forma mais pura o possível ao que realmente e legitimamente somos, exaltando e deixando florescer nosso mais autêntico potencial, nossa Verdadeira Vontade. A visão e a manifestação do que esse potencial é em todo seu esplendor é o que buscado, sendo o que também é chamado de Deus ou Daemon Pessoal.

Esta é a busca, a Grande Obra, o transformar dessa fagulha divina que habita em todos nós (e que na Mão Esquerda é sempre adversarial por essência) de apenas uma partícula de potencial bruto até o máximo que ela pode se tornar. Atingir o que é chamado de “conversação” com o Daemon Pessoal para que o adepto entre em contato com qual é o seu potencial e possa se orientar com clareza e discernimento até ele não é uma tarefa fácil, assim como na Mão Direita a conversação com o Santo Anjo Guardião também não o é. Especialmente para o manifestar em plenitude na consciência do praticante. Pois estas são manifestações do nosso eu superior já divinizado.

As Ordálias

Tendo em consideração que esta é a Obra, cada vertente dentro da Mão Esquerda vai a conduzir de uma forma. Existem métodos e trilhas que são próprias do Satanismo, outras que são próprias do Luciferianismo e por aí vai. Inclusive, boa parte das vertentes da nossa Via hoje em dia possuem métodos próprios de conduzir seus adeptos pelo caminho iniciatico das Qliphoth, que são muito usadas para essa transformação e alquimia interna pelo viés adversarial da Esquerda. Estando elas como a trilha mais drástica e violenta que possuímos tanto pela sua natureza quanto pelo próprio processo que elas desencadeiam. Afinal, quando falamos de processos de lapidação e evolução, o trabalho não é e nunca poderia ser feito para ser simples.

Principalmente aqui, principalmente na Via Sinistrae. Estamos na Corrente do Adversário, na jornada antinomiana. A fagulha divina que possuímos dentro de nós é adversarial, e a nossa evolução é para aprimorá-la. Para nos tornarmos a manifestação viva e pulsante do Adversário que realmente somos em toda sua plenitude. A Alquimia Negra na qual trabalhamos nunca teria outro gosto além do gosto do nosso próprio sangue pois forjar o nosso caminho para além da ordem e das leis do Universo não só possui seus desafios próprios como gera uma reação de força contrária que se coloca contra o adepto durante todo o seu processo.

Para entender isso, imagine que antes de iniciarmos nossas jornadas todos fazemos parte, de certa forma, do intrincado tecido que forma a substância do Universo. Ocupando espaço de uma determinada forma e em uma determinada posição dentro dele. Ao darmos nosso primeiro passo nos movimentamos, saímos do lugar, e saímos do lugar para nos colocarmos num papel de oposição, no papel do Adversário. Isso causa um desequilíbrio momentâneo neste tecido que procurará se harmonizar novamente e para isso se colocará contra o praticante, pois a solução de menor esforço é que simplesmente volte ao antigo local aquilo que lá estava antes. É desta movimentação que vem as primeiras ordálias, as primeiras provações da jornada.

Essas são geradas pelo desconforto criado pelo movimento em si. As circunstâncias ao seu redor tendem a tentar te puxar de volta, a te impedir de continuar. É o primeiro baque instantâneo que tem como intuito provar se a sua vontade de continuar realmente é firme o suficiente para que você trilhe a jornada. O primeiro teste sempre é relacionado a sua resistência, é onde você descobre a firmeza que existe ou não na sua decisão e no seu comprometimento ao caminho que você escolheu, seja ele qual for.

E, por experiência própria e pelo que eu acompanhei de outros praticantes ao longo dos anos, esse período geralmente se estende por todo primeiro ano da jornada. Algumas pessoas demoram menos, outras estendem mais, mas num geral o primeiro ano é onde temos esse embate de resistência. Até pelo fato de que esse é o tempo que precisamos para estruturar e realmente engatar em um novo Caminho.

A sensação que esse processo proporciona é a de que entramos em uma queda de braço não só com nós mesmos, com nossa razão e motivações, mas com a própria vida num geral. Todos os problemas que puderem surgir para atrapalhar e para gerar questionamento surgirem. Desde problemas pessoais como a perca de amigos, de relacionamentos e com o surgimento de problemas familiares até mesmo a problemas de ordem prática como a perca de um trabalho, ter que se mudar para outra cidade ou local, enfrentar preconceitos, escassez, privações até mesmo problemas de saúde. Tudo o que pode acontecer para gerar desistência, acontece. Tudo que pode acontecer para testar se é isso mesmo que queremos ou não, acontece.

Pois neste período não temos só o tempo para estudar, para testar coisas e para semear as nossas bases mas sim para o próprio Caminho nos testar, da mesma forma como o testamos. E ele testa a nossa própria natureza, para ver do que é feito o cerne daqueles que se apresentam. De forma que apenas aqueles que realmente se alinham ao Caminho conseguem seguir em frente. As transformações e provas deste início, desta forma, são decisivas. É onde aqueles que realmente possuem a Chama Negra a despertam dentro de si e vencem suas primeiras batalhas para seguir em frente, e onde quem não deve prosseguir é espantado para longe.

Depois desse primeiro período de triagem, toda a vida daqueles que conseguiram prosseguir já estará alinhada para que eles deem seguimento a suas Obras pessoais. E é neste momento onde as Ordálias passam a serem muito mais focadas, muito mais duras e muito mais específicas. É onde elas começam de verdade, por assim dizer. Pois é com a real inserção do adepto no Caminho, tendo conquistado seu direito de entrada e demostrado sua aptidão, que tudo realmente começa. E podem levar anos até que esse momento chegue, sendo o desenvolvimento da nossa Obra algo que durará pelo resto das nossas vidas. Então, nunca pense que a Mão Esquerda enquanto Via de evolução pode ser trilhada para se obter resultados e poder rápidos, pois ela não pode. Ela é o aprimoramento constante dos nossos espíritos na Corrente do Adversário, ela é um compromisso definitivo com aquilo somos e aspiramos ser em eterna progressão.

Somos tanto capacitados como testados pelos guias e pelos professores do nosso Caminho, que são figuras infernais e adversariais, para nos desfazermos de tudo que não reflete quem realmente somos em nossa jornada até a nossa Apoteose. As circunstâncias ao nosso redor, desta forma, sempre passarão a refletir nosso trabalho espiritual e a nossa Obra, para o bem e para o mal, até que toda a nossa vida seja a Obra em si. Em questão de processos espirituais ou falhamos em tudo ou somos bem sucedidos em tudo. O sucesso nos alavanca em todas as instâncias das nossas vidas, e as falhas nos destroem, nos apodrecem de dentro para fora até que consigamos as superar. Então, nunca pense em assumir para si uma trilha ao qual você não esteja disposto a se doar completamente, a se deixar transformar completamente. Pois este é o processo. Esteja nele por inteiro, ou não esteja.

Até mais!

Volte ao Guia

Atenção: A reprodução total ou parcial deste texto é proibida e protegida pela lei do direito autoral nº9610 de 19 de fevereiro de 1998. Proíbe a reprodução ou divulgação com fins comerciais ou não, em qualquer meio de comunicação, inclusive na internet, sem prévia consulta e aprovação do autor.

A Mão Esquerda é para mim?

Fonte: Arquivo pessoal

Se você de alguma forma já se encontra nas margens da Corrente do Adversário mas ainda hesita, se perguntando se esse Caminho seria ou não adequado para você, talvez esse texto possa te ajudar. A resposta definitiva é algo que só você pode achar, e por si mesmo. Mas, se você se sentar um pouco aqui comigo, nossa conversa te fará sair com algumas respostas.

Em primeiro lugar, eu gostaria que você se imaginasse de pé nas margens de um grande rio. Um rio tão grande, tão vasto, que você mal consegue ver sua outra margem. Suas águas são escuras, gélidas, e uma neblina úmida cobre tudo ao seu redor. A atmosfera e a energia desse local são, num todo, bem soturnas. Imaginou? Agora, em um piscar de olhos, imagine que um espelho surge a sua frente. Pairando no ar, sem nenhum tipo de suporte ao se redor. E, quando você olha em sua superfície enegrecida, ao invés de ver o seu rosto refletido você vê uma chama flutuando em meio as trevas.

Olhando para essa chama, a única fonte de calor em toda paisagem, eu gostaria que você considerasse algumas coisas sobre o seu próprio coração.

Me diga, com sinceridade, em quais situações da sua vida você já foi mal visto por questionar demais? Você consegue revisitar na sua mente os momentos onde você não conseguiu, por mais que você até quisesse, simplesmente concordar calado sem que o incômodo tomasse conta e fosse mais forte que você?

A dissidência é a maior marca da Mão Esquerda. Você consegue a encontrar dentro de você quando as suas opiniões sempre divergem das do seu meio? Quando você não acata ordens sem as indagar antes? Em todas as vezes que você notou as contradições ao seu redor e as contestou? Quantas vezes você já bateu de frente com figuras de autoridade, mesmo sem perceber?

Aqui, isso será necessário. Pensar de forma independente e não ter medo de ser o único que contraria. Que não se conforma. Ao pensar nisso, a chama a sua frente cresce ou diminui?

Agora me diga, com sinceridade, o quanto você é capaz de agir sobre seus incômodos? Você é do tipo cujos lábios involuntariamente formam um sorrisinho quando sente algo te desafiando?

Ser alguém que tem a iniciativa e o peito de fazer por si mesmo ao invés de esperar a vontade ou a ajuda de outras pessoas é absurdamente vital por aqui. O Caminho só pode ser trilhado por quem é capaz de pegar o touro pelos chifres. Sem hesitação. Sem depender de outras pessoas para te validarem e te segurarem enquanto você toma a ação em suas próprias mãos. Ao pensar nisso, a chama a sua frente aumenta ou se enfraquece?

Me diga, com sinceridade, o quanto você se incomoda ou não com pessoas cujo caminho, opinião ou estilo de vida divergem dos seus? Você é capaz de compreender que, apesar das suas crenças, vivências e ideias serem importantes para você elas podem não serem para os outros? Por estas bandas não existe espaço para dogmatismo. Se você é capaz de pensar de forma independente, o outro também é. Diferenças não devem te incomodar.

Na verdade, você deve ser mais do que capaz de mudar de posição e de opinião caso novos pontos de vista forem apresentados a você. Com novas informações surgem novas ideias e nada deve ser inalterável. Ter medo de quem não se assemelha a você e de rever a si mesmo não é como as coisas fluem por aqui. Pensar nisso faz a chama diante de você crescer ou tremular insegura?

Me diga agora, com sinceridade, você consegue se responsabilizar por si mesmo? Ou seja, você é capaz de responder pelos seus próprios atos, agir por conta própria e cumprir com a sua palavra, sendo fiel as obrigações que são inerentes a você, e apenas a você, ou você sente que precisa de uma figura mais velha, mais experiente, e mais relevante que você para guiar os seus passos?

Aqui, a sua obrigação é se encarregar por si mesmo. Se algo der errado, o possuidor da culpa será você. E quem deve responder sobre esse erro e o consertar também. Você não deve estar aqui com a mentalidade de bater na porta dos outros quando as coisas estourarem na sua mão. O caminho é seu e não dos outros. Você faz, você responde, você assume, você conserta. De igual forma, seus louros são seus. Não do fulano, não do ciclano, não graças a não sei o que, são seus. É graças a você. Quem deve ser louvado é você. Pensar nisso faz a chama a sua frente crescer ou diminuir?

Falando nisso, me diga agora com sinceridade, você confia em si mesmo para se assumir dessa forma? Confia na sua própria capacidade de cuidar de si mesmo? De prover para si mesmo, em todos os níveis e sentidos?

A Mão Esquerda preza pela independência e auto regência. Você não vai encontrar um dos nossos vacilando na beira de uma estrada esperando alguém segurar sua mão para poder atravessar. O tempo gasto com qualquer insegurança pode facilmente ser gasto em busca do conhecimento e das ferramentas necessárias para a ação. Não sabe algo? Procura. Corre atrás. Dá seus pulos. Você não nasceu sabendo, mas os que sabem hoje em dia também não. Eles foram atrás também. E você é tão capaz quanto qualquer um deles, ou não é?

Se você me responder que é ainda mais capaz aqui, definitivamente a chama a sua frente dobrou de tamanho.

Agora, me diga com sinceridade, você é um bom estrategista? Estas bandas não são fáceis, você tem que ter discernimento. Analisar as situações ao seu redor, saber onde e como se posicionar e como coordenar os seus recursos se faz necessário em um meio como o nosso. Não se precipite. Saiba se planejar e seja uma pessoa meticulosa em suas ações. Andar com equilíbrio nos faz andar por mais tempo.

Agora, analise como a chama diante de você está. Ela diminuiu até quase se apagar ou se expandiu ao ponto de tomar o espelho todo? Se ela está quase se extinguindo, deixe que isso aconteça e saia da visualização. Não existe nada de errado com isso e absolutamente ninguém está aqui para julgar. Agora, se todo o espelho estiver em chamas diante de você, permita-me falar mais uma ou outra palavra nos seus ouvidos.

É importante que você tenha em consideração que a Mão Esquerda é uma Via antinomiana por natureza. O que significa que ela se coloca como um caminho que se opõe aos preceitos, normas, regras e leis estabelecidas pela cultura que a cerca. E esse papel é o seu papel adversarial por essência, como vemos aqui. Então, espere ser retirado da conformidade ao status quo e ser forçado a desconstrução para que, assim, você possa se reconstruir do zero. E esse processo é um processo de morte. Você morre para a sociedade onde antes você estava inserido e para si mesmo se tornando outra coisa, que ocupará outro espaço, que terá outra vida e outros valores completamente diferentes de antes. Principalmente pois os laços com as antigas limitações, vergonhas, ódios e medos pelo que se desvia da norma são cortados.

Aqui lidamos com tabus abertamente e isso irá necessariamente incluir os seus tabus. As coisas que para você são difíceis. As noções que você tem como invioláveis pois foram colocadas como sagradas para você desde o seu nascimento. Onde não se mexe, o que não se questiona. Os seus limites morais. Aquilo que te traz vergonha, constrangimento e a sensação de que, de alguma forma, você será punido se o fizer. O que você considera que é perigoso, que é impuro e que não deve ser feito. Tabus comuns de serem enfrentados por aqui são tabus referentes a sexualidade, o ir diretamente contra os dogmas e a moralidade religiosa de onde o adepto veio, o lidar com práticas tidas como controversas como o uso das maldições e a experimentação dos vícios e “pecados” que são tidos como motivos da queda e da perversão humana.

E todo esse processo que a Mão Esquerda naturalmente tem de propositalmente ir contra o que é tido como convencional acaba sim colocando seus praticantes em uma posição marginal e adversarial. O que é, a longo prazo, cansativo e solitário. Se você não é naturalmente acostumado a estar as margens, a receber olhares tortos e a ter pessoas se indispondo com você pode ser psicologicamente ainda mais custoso do que naturalmente já o é para você se meter por aqui. Sempre leve isso em consideração.

Pois, apesar de não ser um Caminho que prende ninguém a si (ninguém vai te impedir de ir embora se você realmente quiser ou precisar), você nunca vai voltar como chegou. Sua mentalidade não vai voltar a ser o que era antes de você se aventurar por essas veredas. Certas coisas irão se alterar em você e elas não terão um retorno. Por isso, eu nunca indico essa Via para quem acha que ela é só mais uma área dentre tantas outras ou para quem está perdido e quer testar algo novo só para ver o que acontece. As energias da Esquerda são disruptivas por natureza. A teste e ela te testará em dobro. Se você não naturalmente se alia a filosofia e as propostas desse espaço não entre nele.

Olhe para o espelho em chamas uma última vez. Agora, você consegue se ver refletido em sua superfície escura. Como você se enxerga? Qual potencial você está vendo em meio ao fogo? No que você se transforma? É algo que você deseja? Por qual motivo?

Conseguindo responder isso para si mesmo, dê o próximo passo.

Volte ao Guia

Atenção: A reprodução total ou parcial deste texto é proibida e protegida pela lei do direito autoral nº9610 de 19 de fevereiro de 1998. Proíbe a reprodução ou divulgação com fins comerciais ou não, em qualquer meio de comunicação, inclusive na internet, sem prévia consulta e aprovação do autor.

Resenha – Atanatize – O Caminho dos Mestres Não-Mortos de Alexander L.M

Fonte: Arquivo pessoal

Na resenha de hoje iremos falar sobre um tópico que ainda possui poucos livros a seu respeito dentro do nosso cenário nacional: o vampirismo! Atanatize – O Caminho dos Mestres Não-Mortos, publicado este ano pela Manus Gloriae Editora, chama a atenção sendo um volume direto ao ponto, cheio de exercícios e com rituais funcionais ao seu propósito.

Ficha Técnica

Autor: Alexander L.M

Editora: Publicado originalmente de forma independente e aqui, em território nacional, pela Manus Gloriae Editora

Idioma: Português e inglês

Páginas: 94

Ano: 2023

Sinopse do livro

Atanatize é um grimório de vampirismo que, de forma prática e sem rodeios, ensina os meandros dessa perigosa e fascinante arte. Contendo exercícios e técnicas, certamente auxiliará o iniciante a drenar energia sabendo escapar das ameaças iminentes deste sombrio caminho predatório. O livro apresenta alguns exercícios simples e diretos, um resumo de divindades e personalidades vampíricas e um conjunto de rituais, invocações e pacto com entidades do caminho dos Não-Mortos para aqueles que desejam adentrar no vampirismo e se tornar um Não-Morto.

Resenha

Sendo um dos livros mais curtinhos e funcionais que eu li esse ano, Atanatize cumpre bem a sua proposta e entrega o que promete ao leitor. No entanto, eu diria que ele é mais um livro de nível intermediário do que introdutório, como explicarei um pouco mais nos pontos positivos e negativos da obra. Um completo estranho ao tema pode ficar perdido sem ter alguns contextos mais desenvolvidos pelo autor, mas alguém que já possui noções básicas pode navegar o livro sem dificuldades e encontrar formas de aprimorar a própria prática de forma realista e funcional.

Pontos Positivos

O primeiro ponto positivo que eu realmente consegui sentir ao ler Atanatize é que seu autor fala por experiência própria. Se você tem algum nível de experiência com o vampirismo, mesmo que pouca, vai conseguir identificar na fala de Alexander L.M uma pessoa que sabe o que diz pois realmente é um praticante e está colocando em suas páginas a realidade sobre o assunto sem se alongar com firula. Inclusive, em alguns momentos ele poderia até mesmo ter sim se alongado um pouco mais, mas não o fez. O livro é bem curtinho e você consegue matar a leitura em uma tarde rapidamente.

Eu gostei bastante dos exercícios num geral. A ideia do treinamento com a planta, antes de se passar para outros níveis, é muito legal e vale muito a pena de se fazer. O uso de sangue nos rituais finais é, em minha visão, coerente com as propostas apresentadas. Inclusive, são rituais bem descomplicados e funcionais. Apesar dele os passar para a sua linhagem e vertente especificamente um adepto um pouco mais estudado saberá pegar seu funcionamento base e os aplicar a outras linhas sem problemas.

Um dos melhores pontos no entanto, e sem dúvida, é o quanto o autor não poupa nos alertas sobre as práticas. Ele consegue mandar a real sobre as consequências de cada coisa sem precisar demonizar o vampirismo mas sim se atendo ao que é concreto. Você sabe exatamente o que esperar e nunca vai poder dizer que não te falaram. As indicações bibliográficas também são bem interessantes de se dar uma olhada para se aprofundar no tema. Afinal, ele não inclui e não nos prepara para tudo, mas pode ser um bom livro para se ter quando estamos uns passos já na jornada.

Pontos Negativos

De uma forma muito curiosa eu diria que, em certo nível, a falta de rodeios do autor é justamente o primeiro ponto negativo que eu posso citar. O livro ser curto pode ser bom, mas não precisava ser tão curto. Ele coloca muitos conceitos que precisam de um maior contexto de uma forma muito seca, o que faz com que o leitor realmente só consiga aproveitar a leitura se já tiver algum letramento nos tópicos que são citados, como já disse acima. Ele chega a, em alguns momentos, encavalar conceitos distintos uns nos outros, podendo ficar confuso ao leitor casual.

Um exemplo disso sendo logo na introdução onde ele cita o caminho do vampiro vindo dos Annunaki (um grupo de divindades sumérias, acádias e babilônicas) com conceitos mitológicos de Sekhmet (deusa egípcia), indo para os Vigilantes dos apócrifos de Enoque, para Caim (ambos judaicos) e depois para Lilith (voltando a Mesopotâmia). Todas essas culturas e mitologias são distintas e diferentes entre si. Sendo mais opinativo do que qualquer outra coisa a linha que o texto quer traçar entre elas. Quem tem por costume ler literatura vampírica entende de onde o autor veio e onde ele quer chegar, mas pode causar mais confusão do que qualquer outra coisa para quem é de fora.

Citações sobre algumas crenças referentes ao funcionamento da glândula pineal e sobre conspirações envolvendo adrenocromo também surgem sem muito contexto e de forma bem mais solta do que deveriam. No caso, adrenocromo é simplesmente um composto químico sintetizado pela oxidação da adrenalina. Existiram algumas pesquisas sobre ele em pequena escala nas décadas de 1950 e 1960 mas nada muito conclusivo. Sua popularidade se deve a como ele foi mencionado e usado na cultura pop, sendo citado em livros como Laranja Mecânica (1962) de Anthony Burgess e Medo e Delírio (1971) de Hunter S. Thompson de onde o exagero ficcional até hoje causa teorias conspirativas.

Aliás, sempre é de um mau gosto absurdo autores de Mão Esquerda citarem e usarem teorias da conspiração deste tipo em seus livros. Afinal, elas vem predominantemente de grupos de extrema direita como o QAnon e de conspirações politiqueiras como o Pizzagate que usam largamente os estereótipos antissemitas mais batidos da história da humanidade, como os libelos de sangue, colocando tudo nas costas justamente de adeptos da Mão Esquerda. Nestas narrativas, são sempre os perversos satanistas imaginários da elite que roubam criancinhas para sugar delas o elixir da juventude. Um adepto da Esquerda vir com papo de pânico satânico é sempre cafona e brega.

O segundo ponto negativo é o tom, digamos, um tanto quanto impaciente que muitos autores do meio tem e que neste livro encontramos também. Como na pág. 17 onde ele diz, a respeito de um exercício ao ar livre de noite que, se o leitor não consegue fazer aqueles exercícios, basicamente nem tem o que estar fazendo com o livro em mãos porque o caminho não é para quem não consegue fazer nem sequer aquilo. Em primeiro lugar, não é o leitor que está obrigando o autor a passar informação alguma para esse tipo de irritação estar presente no texto. E em segundo lugar, pode ser super de boas sair para caminhar no meio do mato de noite onde ele mora mas isso não é uma realidade em todos lugares do mundo. Dependendo de onde o leitor morar é melhor se poupar do assalto, entende? Existem mil maneiras e técnicas de se desenvolver as mesmas coisas sem se ser burro contra a própria integridade física.

O terceiro ponto negativo é a sempre presente falta de criatividade de autores masculinos ao citar ataques sexuais quase como que a primeira sugestão quando saímos dos exercícios introdutórios para nossos primeiros avanços em outros seres humanos. É sempre uma falta de refinamento incrível e eu sugiro que o praticante satisfaça seus impulsos sexuais de uma forma regular e física ao invés de descontar possíveis frustrações ou anseios em exercícios de vampirismo. Principalmente se estamos tratando de novatos no tema. Podemos exercitar vampirismo sexual com nossos parceiros, tendo conversas prévias sobre, mas eu não iria de cara nisso. Aliás, fica uma coisa até mesmo deslocada já que o livro possui de fato um capítulo sobre vampirismo sexual onde o tema é um pouco mais desenvolvido, mas enfim.

O quarto ponto é mais uma confusão, estando no capitulo sobre os Mestres Não-Mortos. Adeptos da Mão Esquerda não buscam unificação com deus/satã ou qualquer outra coisa como já vimos aqui. Buscar uma existência independente, seja como vampiro ou outros no pós vida, já é o normal na Via Sinistrae. E, além disso, o foco do autor é bem euro centrado ao falar das figuras dos Não-Mortos. Com certeza essas linhas são um caminho, e estão na proposta do livro inclusive, mas não são obrigatórias. Você pode desenvolver seu vampirismo com diversos guias espirituais, inclusive daemons e divindades, sem precisar entrar nas correntes que o autor cita. É, de fato, opcional. Existe bastante diversidade para se ser trabalhada num ramo tão vasto.

Acessibilidade: Eu realmente só achei a obra até agora com a Manus Gloriae e na Amazon, em inglês. As informações sobre o autor em si também são escassas, no máximo eu encontrei o site Temple of Belial com o outro único livro assinado por ele. Mas em um todo, não é um livro caro e pode facilmente ser adquirido sim!

Até mais!

Volte ao Guia

Atenção: A reprodução total ou parcial deste texto é proibida e protegida pela lei do direito autoral nº9610 de 19 de fevereiro de 1998. Proíbe a reprodução ou divulgação com fins comerciais ou não, em qualquer meio de comunicação, inclusive na internet, sem prévia consulta e aprovação do autor.

Missa Negra – Da blasfêmia ao psicodrama

Fonte: Arquivo pessoal

Historicamente, é difícil termos outro ritual tão intrinsecamente ligado ao satanismo quanto a Missa Negra no imaginário popular. As lendas urbanas disseminadas ao seu respeito pela Igreja Católica em sua caçada aos hereges e desviantes misturava em si práticas que fossem consideradas chocantes aos ouvintes da época a narrativas antissemitas clássicas. Entre cruzes invertidas e o uso profano de hóstias temos nelas as clássicas acusações de blood libel, incriminações falsas feitas por cristãos contra judeus que tinham por objetivo os culpar de usar sangue cristão em seus rituais, na ideia de que satanistas roubavam crianças não batizadas para usarem seu sangue e sua gordura em seus ritos. Afinal, nunca faltou, por parte da Igreja, o anseio obsessivo de acusar aqueles que ela colocava no papel do outro os crimes que ela mesma propagava de inversão dos símbolos religiosos de outras culturas contra as quais ela antagonizava e da tortura e do rapto de incontáveis adultos e crianças em suas campanhas genocidas ao redor do mundo sob o falso manto de estar levando uma mensagem de paz e de amor.

Contra ela, até a perca de poder progressivo que ela sofreu ao longo dos anos, muitos movimentos e nomes se ergueram. E, para difamar esse nomes, ela sempre levantou os piores boatos do quais foi capaz. Criando medo para controlar as pessoas através do pânico social no qual ela se especializou através dos séculos. Como já mencionado no texto introdutório Satanismo – Um breve resumo histórico, a demonização de tudo que contra ela se levantasse e a eleição de inimigos contra os quais jogar a opinião pública sempre foram os métodos mais queridinhos de controle e manipulação de massa usados pela Igreja Católica e pelo cristianismo num geral até os dias de hoje. E algumas figuras, de certa forma, souberam usar desse imaginário criado pela Igreja de uma melhor forma que outras. As vezes, até mesmo o capitalizando. Afinal, se contam uma mentira sobre você e sobre pessoas como você, por qual motivo você não a usaria ao seu favor tendo o dinheiro e o capital social certo a sua disposição?

Esse parece ter sido exatamente o caso de Catherine Deshayes, conhecida popularmente como Madame Voisin, ou La Voisin. Tendo sido um dos maiores nomes do Caso dos Venenos, que causou um baita rebuliço dentro da corte francesa entre 1670 e 1682, Catherine soube se manter por anos de forma muito próspera dentro dos altos círculos sociais franceses vendendo de venenos a drogas, além do disponibilizar de serviços que incluíam de abortos a encantamentos para os mais diversos fins. É dela, e do processo do seu julgamento que culminou na sua execução em 1680, que temos os relatos históricos mais confiáveis de Missas Negras reais, performadas para a elite francesa e com a participação de padres amistosos a causa, como expressões de um anti cristianismo herético e socialmente subversivo.

Muito longe das malévolas bruxas campestres que a Igreja gostava de pregar no imaginário popular, o mais próximo que tivemos historicamente das Missas Negras provieram de pessoas de alto status social e de participantes do clero que tinham os acessos e a blindagem social oportuna para realizarem suas fantasias com discrição, liderados por uma figura que sabia pegar as fantasias criadas pela Igreja e as usar astutamente dentro dos círculos que frequentava para seus próprios fins. Mesmo após sua execução, a figura de La Voisin continuou rendendo para seus inquisidores uma verdadeira infinidade de material anti herético onde eles deitaram e rolaram. Afinal, o nome dela colocou de forma mais substancial a existência das Missas Negras no mapa, e a máquina de boatos e medos da Igreja pode funcionar a todo vapor, aumentando mil pontos a cada conto.

Anos depois, durante a década de 60, todo esse repertório cultural e histórico foi reaproveitado de forma igualmente astuta por Anton Szandor LaVey nas fundações da sua Church of Satan. Mesmo que, com o tempo, LaVey tenha deixado de performar sua versão moderna da Missa Negra, ele ainda a inseriu em seu livro The Satanic Rituals para ser executada por aqueles que sentirem que dela precisam para expressarem sua rebelião, e sua oposição a Igreja. Através dela, causando em si mesmos uma quebra definitiva contra os dogmas cristãos. E isso, aqui, é importante de ser frisado. Enquanto o foco das Missas Negras, em seu contexto mais histórico, focava muito mais na blasfêmia, o contexto moderno dado por LaVey a elas é essencialmente o do psicodrama que visa a libertação de seus participantes dos medos, das culpas e do poder que os símbolos cristãos podem infligir mesmo naqueles que já se afastaram de seus domínios.

Tenha em mente que a definição de psicodrama com a qual aqui trabalhamos é a da atividade em grupo na qual seus integrantes desempenham diferentes papéis na dramatização de uma situação com forte carga emocional e a de blasfêmia é a de atos injuriosos contra o nome de um deus ou religião que visam quebrar laços com estes de forma irreversível. No caso da Missa Negra de LaVey, a dramatização é a inversão do ritual da Missa Tridentina, onde a morte de Cristo se dá sem a sua ressureição e com a profanação de sua liturgia, instrumentos e crenças. Ela foi esquematizada para, inicialmente, puxar a carga e as energias cristãs para si para que, logo em seguida, elas sejam alteradas até sua destruição através do sacrilégio. Purgando seus participantes a cada ato e invertendo a dinâmica de poder cristã, tirando-o das mãos do divino e da Igreja e a devolvendo as mãos das pessoas.

Tendo isso em mente, tudo que é performado durante uma Missa Negra moderna visa sempre essa inversão para fins de libertação mental e emocional e elas devem ser performadas apenas para dar vasão a necessidade psicológica dos participantes de renegarem seus prévios laços com o cristianismo através da catarse por ela proporcionada. Sua fantasia deve ser utilizada no único sentido atribuído por LaVey aos verdadeiros ritos satânicos, o de se entrar em um estado subjetivo e livre que facilite aos seus participantes se expressarem e processarem emocionalmente o que preciso for para sua libertação. Para a catalisação da mudança. Sem este foco estabelecido de forma clara, o rito se transforma em apenas uma performance teatral que pode até entreter, mas não terá sua finalidade essencial respeitada ou manifestada.

É importante frisar também que, em The Satanic Rituals, LaVey deixa claro que os papéis ocupados durante a realização das Missas tem como foco a representação do princípio dualista das polaridades ativo/passivo para além dos estereótipos que temos em papéis de gênero. Mulheres podem perfeitamente desempenharem como sacerdotisas na falta de um homem para o papel de padre, desde que elas estejam confortáveis em representar o princípio ativo do rito. Inclusive, é tido como muito mais fluido para o bom andamento deste ter uma mulher forte e de energia projetiva o conduzindo do que um homem tímido e de energia introspectiva. Grupos formados apenas por mulheres ou apenas por homens, incluindo aqui a presença possível de pessoas trans, podem, ainda sim, performarem com sucesso a Missa desde que os papéis sejam executados por pessoas de personalidade e energia adequada a cada um deles.

Volte ao Guia

Atenção: A reprodução total ou parcial deste texto é proibida e protegida pela lei do direito autoral nº9610 de 19 de fevereiro de 1998. Proíbe a reprodução ou divulgação com fins comerciais ou não, em qualquer meio de comunicação, inclusive na internet, sem prévia consulta e aprovação do autor.

Os Nove Pecados Satânicos

Fonte: Arquivo pessoal

Até mesmo a mais focada na liberdade individual de seus adeptos entre todas as religiões tem seus pontos a serem evitados. Como já vimos aqui, os Nove Pecados Satânicos foram formulados pela Church of Satan alguns anos após a publicação da Bíblia Satânica por Anton Szandor LaVey. Eles funcionam como pontos a serem evitados por todo adepto saudável do satanismo, guiando a conduta para o desenvolvimento e auto aperfeiçoamento. E aqui, além de colocar cada um deles como expostos pela Church of Satan, também coloco os meus comentários sobre. Vamos lá?

Os Nove Pecados Satânicos

  • Estupidez Ela está no topo da lista dos pecados satânicos e é o principal pecado do satanismo. É uma pena a estupidez não ser dolorosa. Uma coisa é ignorância, mas nossa sociedade incentiva a estupidez. Isso tem a ver com as pessoas indo onde quer que lhes é dito para ir. A mídia promove a estupidez como uma postura cultivada que não só é aceitável, como é louvável. Os satanistas precisam aprender a enxergar através do que lhes é dito e não concordarem em agirem como estúpidos.

Particularmente, sempre gostei muito dessa lista de pecados começar justamente recriminando a estupidez. Sendo uma das mais tradicionais vertentes da Mão Esquerda, no Satanismo temos muito claro que ou você está dentro da Via Sinistrae ou você é estúpido. Ambas as coisas ao mesmo tempo ninguém pode querer se dar ao luxo de ser. Ser uma pessoa grosseira, sem discernimento, sem inteligência e sem cortesia aqui é o pior e mais rápido tiro no pé que alguém pode se dar. Não é opcional para ninguém aqui saber se conduzir, saber questionar e desenvolver opiniões próprias bem embasadas. A falta de inteligência e a incivilidade são as piores pedras de tropeço em nosso meio. Seja lúcido, procure se educar, seja sensato e bem ponderado.

  • Pretensão — Uma postura vazia pode ser muito irritante e não aplica as principais regras da Magia Menor. Está em pé de igualdade com a estupidez por manter o dinheiro circulando nos dias de hoje. Cada um é levado a se sentir como um fardo pesado, tendo dinheiro ou não.

Outro ponto onde muitos caem e anda juntinho da vaidade desmedida: a pretensão. O querer conquistar as próprias ambições através de se passar por algo que não se é e nem sequer poderia sustentar verdadeiramente. Aqui entram os pedantes, a galerinha esnobe que vive apenas das vantagens que contam da boca pra fora sem ter uma real base que as sustente. Nada é mais patético do que uma pessoa forçada. E, se você quiser estufar o peito e ser arrogante sem de fato ser capaz de peitar a responsabilidade que vem junto ao que você afirma de forma vazia aos quatro cantos, pode ter certeza que a queda é rápida e é feia. Afinal, os impostores sempre se desmascaram. E uma falsa coroa quebra um pescoço com muito mais facilidade do que uma verdadeira. Lide com suas próprias inseguranças de outras formas que não sejam se passar pelo que você não é.

  • Solipsismo — Projetar suas reações, respostas e sensibilidades em alguém é provavelmente o menos responsável que você pode ser, e é algo muito perigoso para os satanistas. É o erro de esperar que as pessoas lhe deem a mesma consideração, cortesia e respeito que você naturalmente as dá. Elas não darão. Ao invés disso, os satanistas precisam concentrar suas energias para aplicar o ditado “faça com os outros o que eles fazem com você”. Dá trabalho para a maioria de nós e requer constante vigilância, mas lhe tira a ilusão confortável de que todos são como você. Como dito, certas utopias seriam ideais em uma nação de filósofos, mas infelizmente (ou talvez felizmente, de um ponto de vista maquiavélico) estamos bem distantes disso.

Se você nunca ouviu o termo Solipsismo antes, não tem problema. Ele, na verdade, é uma concepção filosófica onde, para além de nós mesmos, só existiriam as nossas próprias experiências. Ele é o extremo de só acreditarmos nas nossas experiências interiores e pessoais mesmo quando não existe qualquer relação entre elas e a realidade objetiva. Um exemplo muito bom disso são as pessoas que ficam tão perdidas na própria gnose pessoal que literalmente descartam qualquer coisa que possa entrar em conflito com elas e começam a viver num universo paralelo onde só o que elas recebem e enxergam é verdade, por mais que existam provas do contrário. De certa forma, é um egoísmo pragmático. Onde se descarta qualquer contexto em prol da subjetividade pessoal até as últimas consequências.

O problema é que, como sabemos, o mundo não se resume a nós e ao nosso umbigo. A realidade do universo não se resume ao eu. E nos fecharmos para o externo ignorando todo o mais não nos leva a lugar algum. Mas aqui, especificamente no terceiro pecado, lidamos com a concepção moral do Solipsismo, onde a moralidade do sujeito também é tida como a moralidade do resto do mundo. No Solipsismo moral existe uma dificuldade real da pessoa entender que os outros não pensam e não agem como ela. Se ela não faria algo, os outros também não fariam. Se ela tem uma concepção de certo e errado, é impensável que os outros não participem dela. Os problemas que isso causa são inúmeros, e devem ser evitados. Não espere que todo mundo seja como você. Não se projete nos outros. Enxergue o mundo objetivamente. Ele, na maioria das vezes, jamais será um perfeito reflexo seu.

  • Auto ilusão — Consta nas “Nove Declarações Satânicas”, mas merece ser repetido aqui. É outro pecado principal. Não podemos nos curvar a quaisquer das vacas sagradas que nos são apresentadas, incluindo os papéis que esperamos desempenhar. A única ocasião onde a auto ilusão é bem-vinda é por diversão, e com cuidado. Mas neste caso, não é auto ilusão!

O quarto pecado flui muito bem como uma continuação lógica dos três anteriores. Se no segundo, a pretensão, somos desaconselhados a sermos a figura pedante que se passa por algo muito maior do que realmente é, aqui somos aconselhados a não acreditar em quem joga esse jogo também. Não acredite fácil em qualquer um, em qualquer coisa, e mantenha os pés no chão tanto sobre si mesmo quanto sobre o mundo ao seu redor. Faz de conta aqui, só proposital e para fins de entretenimento.

  • Conformismo de massa — É óbvio do ponto de vista satanista. Não há problema com os desejos de alguém, desde que eles os beneficie. Mas apenas os tolos seguem o bando, deixando uma entidade impessoal lhe dizer o que fazer. A chave é escolher um mestre sabiamente, ao invés de ser escravizado pelos caprichos de muitos.

Aqui temos um ponto extremamente claro da Mão Esquerda como um todo, mas que sempre é bom destacar: esse caminho não é um caminho conforme. Não é para quem quer ser como todo mundo por preguiça de pensar e por se sentir mais seguro estando perfeitamente integrado a maioria. Aqui temos sim personalidade própria. E a visão de que é melhor ser excluído por ser quem verdadeiramente se é do que ser aceito apenas por reproduzir cegamente padrões sem nenhuma reflexão sobre.

  • Falta de perspectiva — Novamente, esta pode trazer grande dor para o satanista. Você jamais deve perder a visão de quem e o que você é, e que ameaça pode ser, por sua própria existência. Estamos fazendo história agora e a todo momento, todos os dias. Sempre tente manter uma ampla visão histórica e social na mente. Esta é uma importante chave tanto para a Magia Menor quanto para a Magia Maior. Veja os padrões e encaixe as coisas se você quer que as peças fiquem em seus devidos lugares. Não se abale pelas impressões da massa: tenha consciência de que você está trabalhando em um outro nível, além do resto do mundo.

Que é fácil perdermos as coisas de vista é algo que sabemos. No entanto, como adeptos da Via Sinistrae, estamos sim fazendo história a cada dia. A cada instante. A cada momento. Trilhamos um caminho inovador, que vai contra o senso comum, e a caminhada de cada um de nós conta. Alcançar os nossos objetivos conta. Nos tornarmos a melhor versão de nós mesmos conta. Não esqueça o motivo pelo qual você está aqui. Tenha-o sempre em mente.

  • Negligência de ortodoxias do passado — Esteja alerta de que esta é uma das chaves para a lavagem cerebral das pessoas de modo a aceitar algo diferente e novo, quando na realidade é algo que já foi aceito mas agora é apresentado numa nova embalagem. Deliramos com a genialidade do suposto criador e esquecemos do original. Isto forma a sociedade alienada.

O sétimo pecado parece ter previsto em si quantas pessoas em nosso meio iriam querer se passar por visionárias e fodonas por coisas que simplesmente quem lê a bibliografia básica do nosso meio já tem como óbvias. Aqui entramos muito em não se ser estúpido. Em se ser uma pessoa difícil de cair em papinho. Estude, se eduque. Vá ler a merda dos livros. Conheça os autores. Assim fica mais difícil ser iludido por gente pretensiosa. Não vá concordar cegamente com qualquer fulano pomposo só porque você quer ser parte de um grupinho. A maioria esmagadora dessa galera na real vive de absorver a personalidade do líder porque ninguém ali tem uma própria. Seja melhor.

  • Orgulho contraproducente — Esta segunda palavra é importante. Orgulho é bom, até a hora em que você começa a “jogar o bebê fora junto com a água da banheira”. A regra do satanismo é: se funciona para você, ótimo. Quando parar de funcionar para você, quando você está no canto da parede e a única saída é dizer “sinto muito, cometi um erro, desejo que possamos nos ajustar de algum modo”, então o faça.

Aqui temos um ponto que muitas vezes as pessoas gostam de esquecer: ser Satanista, ou ser de Mão Esquerda num geral, não significa ser um egoísta ou ser uma pessoa completamente irascível que não admite as próprias falhas e só pensa em si. O processo de auto aperfeiçoamento consiste também em enxergarmos as nossas falhas e revermos as nossas posturas sempre que preciso. Admitir os próprios erros sempre é algo nobre e torna nossa evolução pessoal mais fluida e fácil.

  • Falta de estética — Esta é a aplicação física do fator de balanceamento. Estética é importante na Magia Menor e deve ser cultivada. É óbvio que ninguém pode ganhar dinheiro fora dos padrões clássicos de beleza e forma na maior parte do tempo, sendo assim desencorajados na sociedade consumista; mas uma atenção para a beleza, para o balanceamento, é uma ferramenta satanista essencial e precisa ser aplicada para a maior eficácia mágica. Não é o que é supostamente prazeroso: é o que realmente é. Estética é algo pessoal, reflete a natureza individual, mas existem configurações universalmente agradáveis e harmoniosas que não devem ser negadas.

O último pecado é o único onde eu tenho algumas discordâncias. Sim, estética é muito importante. Sim, é algo que conta muito no mundo e seríamos muito levianos em dizer que não. E sim, temos que aprender a usar a nossa própria imagem ao nosso favor e sermos conscientes dela. Mas muitas vezes, e inclusive em alguns nichos da Esquerda, uma estética não convencional é adotada e usada inclusive para passar mensagens e posicionamentos de resistência. Estética e moda são linguagens. E, como qualquer linguagem, pode ser usada para comunicar as mais diversas coisas. Inclusive, propositalmente deixando o que seria “universalmente agradável e harmonioso” para trás para questionar e bater de frente contra como certas construções sociais que temos em torno do que é ou não aceitável foram construídas. Acredito que exista bastante pano pra manga nessa questão e ela pode ser desenvolvida com muito mais profundidade. No entanto, definitivamente, não ignore o peso dessa questão na sua vida. E saiba como você quer a usar para seu próprio desenvolvimento e benefício. Seja proposital e premeditado em como você escolhe se apresentar para o mundo.

Até mais!

Fonte: The Nine Satanic Sins [1]

Volte ao Guia

Atenção: A reprodução total ou parcial deste texto é proibida e protegida pela lei do direito autoral nº9610 de 19 de fevereiro de 1998. Proíbe a reprodução ou divulgação com fins comerciais ou não, em qualquer meio de comunicação, inclusive na internet, sem prévia consulta e aprovação do autor.

    Existiria como “equilibrar” as Vias Esquerda e Direita?

    Fonte: Arquivo pessoal

    Se você é um adepto da Esquerda, seja pela vertente que for, você já deve ter visto pessoas levantando as sobrancelhas para você ao ouvirem sobre o seu caminho espiritual. Assim como também já deve ter escutado várias frases sobre equilíbrio. Como se, de alguma forma, a Esquerda fosse sempre algo muito extremo. Muito radical. E discursos sobre moderação, sobre trilhar um “caminho do meio”, e não achar que necessitamos de extremismos facilmente surgem.

    São reações que se derivam tanto da falta de conhecimento como também da estranheza que naturalmente a Esquerda sempre provoca. E, como eu também já escutei muito que “não precisamos exagerar” sendo efetivamente de Esquerda, acho importante trazer isso para cá, para o Guia. Afinal, por qual motivo não daria para equilibrar ambas as Vias? Por qual motivo você só poderia trilhar uma delas por vez? Não teria um caminho do meio, uma alternativa mais equilibrada? Bom, vamos começar pelo básico de que:

    Nenhuma pretensão de “mesclar” ambas as Vias gera equilíbrio.

    A Via Dexterae e a Via Sinistrae já são caminhos equilibrados e completos em si mesmos. E sendo, por natureza, antagônicos em essência. Como já falamos aqui, em nosso texto sobre as definições iniciais. Você pode estar em equilíbrio em um ou estar em equilíbrio em outro.

    E, para entender isso, eu gostaria que você pensasse nas Vias em termos de movimento. Imagine que você está no hall de um prédio e existem dois elevadores na sua frente. Um subindo e um descendo. Você conseguiria misturar ambas as direções para que o seu corpo chegasse com maior harmonia em algum lugar? Provavelmente não. Ou você opta por subir ou você opta por descer. O meio termo entre ambos é você não estar indo para nenhuma dessas direções e continuar parado onde você está.

    O discurso de se criar de alguma forma um equilíbrio entre as Vias geralmente vem de meios onde não existe um embasamento real sobre a Esquerda. E essa falta de fundamento pode levar os erros do discurso propagado serem desde erros superficiais e mais bobos até a uma ignorância aberta mesmo, e isso sempre descamba para as Vias serem compreendidas como extremos do comportamento humano. Aí o equilíbrio seria você trilhar um caminho onde você ainda será uma pessoa boa (a parte da Direita, a Luz) mas também não sendo trouxa (a parte da Esquerda, a Sombra). Como se na Direita você só fizesse o bem e a caridade e na Esquerda fosse só vela preta, caixão e maldade.

    Não é assim. Em ambas as Vias você se desenvolve enquanto pessoa de uma forma completa e harmônica. Você não precisa acrescentar bondade (a Direita) ao caminho da Esquerda porque a Esquerda não equivale a egoísmo e ego inflado. Assim como você não precisa acrescentar malícia (a Esquerda) ao caminho da Direita porque ele não presume em momento algum que você não se defenda e que você seja só bondade até as últimas consequências. Ambos os casos seriam você estar em desequilíbrio na sua própria Via, e não uma necessidade de um pouco da outra.

    As Vias não são comportamentos. As Vias são movimento.

    Quando você inicia um caminho espiritual você está iniciando uma movimentação do local onde você está no momento para alguma direção. Para alguma finalidade. E nisso, é fundamental que você tenha em mente que:

    A finalidade da Mão Esquerda é a individualização e a finalidade da Mão Direita é a universalização.

    “Ah, mas o que ambas essas coisas efetivamente seriam, afinal?” Vamos destrinchar!

    Universalização

    Começando pela Direita, cujo foco está na coletividade e na integração. temos o processo da universalização. E ele é, em si, o retornar ao princípio criador divino, Deus. O alcance da unidade indivisível entre o homem e Deus aqui é tido como o retorno, para a humanidade, do estado anterior a sua queda. Uma condição que é tida como perfeita e eterna.

    Todos os caminhos que tenham como objetivo o retorno a um princípio divino do qual nos afastamos e que representa a perfeição de tudo que somos e podemos atingir é, em essência, um caminho pertencente a Direita. Pois, pela Direita, todo sofrimento humano é causado por essa cisão entre Deus, a fonte da Criação, e o homem. O reparando é que retornamos ao que somos em essência, limpos e redimidos de toda mácula causada pela separação.

    Dentro do cristianismo, por exemplo, cultivamos esse retorno durante todas as nossas vidas no aperfeiçoamento das virtudes, em oposição aos vícios (pecado). O racional é elevado acima das nossas capacidades emocionais e o ascetismo e a procura pela pureza, negando o material, as paixões e o terreno em prol do lógico e moralmente elevado são tidos como meios para um fim, para que retornemos a união ao princípio divino, externo a nós, e que unifica em si próprio tudo que existe, Deus.

    Afinal, as virtudes tidas como uma expressão da centelha divina dentro de nós, do divino que não perdemos, uma expressão do que deveríamos ser, podendo nos guiar até o nosso destino final que é retornar ao estado de perfeição e de graça. De união. Só nesse estado a humanidade progrediria na luz do que verdadeiramente é. Só nesse estado seríamos o que realmente somos e fomos feitos para ser, a imagem e semelhança de Deus. E sim, o processo muitas vezes pode ser tido como rígido, colocando sempre as aspirações do intelecto acima dos instintos e da nossa parte material e carnal, pois a Direita lida com a Ordem. Com a disciplina. E, com isso, traz o processo das leis, da lucidez, das figuras de poder (como o divino), da hierarquia bem definida e de tudo que faz a manutenção da vida em coletivo.

    Por mais que existam, e sempre existiram, inúmeras divergências (e até mesmo guerras) entre os próprios cristãos sobre mandamentos, sobre regras e sobre costumes o objetivo final não se perde. Assim como em outros caminhos pertencentes a Direita, o objetivo é retornar ao divino. E esse divino, essencialmente, além de ser compreendido como fonte criadora, também é a imagem de uma perfeição a ser alcançada e nutrida dentro cada um de nós. Pois espelha a nossa natureza nunca perdida, nunca caída, nunca obscurecida.

    E, apesar do cristianismo ser um exemplo fácil de caminho pertencente a Direita, existem muitos outros para fora de seus limites. Inclusive, a maior parte do desenvolvimento do Ocultismo, historicamente, sempre foi a Direita. Afinal, Direita e Esquerda são termos pertencentes ao Ocultismo ocidental. E eu me atrevo a dizer que você encontrará figuras muito mais rígidas e intransigentes em seus caminhos espirituais em meio a magos do que dentro das igrejas hoje em dia.

    Sendo como for, na Direita a direção que tomamos é para a abdicarmos da nossa individualidade em prol de nos unirmos novamente ao divino, ao Todo, a fonte criadora, a Deus. Deixar o eu individual para trás (a morte do ego que muito é discutida dentro da Direita) é buscado como o meio pelo qual retornaremos a ser um com todo o Universo em sua harmonia. Essa união pode ser vista como uma vida em estado de graça e harmonia perfeita com a fonte criativa ou até mesmo a dissolução da nossa alma dentro desse princípio. Assim como uma gota de água se une ao mar, assim nossas almas se uniriam ao divino, não sendo mais uma em si mas se diluindo ao Todo.

    Individualização

    Em contrapartida direta a isso temos o caminho da Esquerda, que é externo ao coletivo e ao social, no processo da individualização. Se na Direita abdicamos da nossa individualidade em prol dos interesses do coletivo, o grupo acima do indivíduo, na Esquerda temos as críticas e a oposição a isso. Pois, quando formamos as regras de uma sociedade, essas regras sempre formarão também aqueles que serão marginalizados por elas. E, dentro de uma estrutura rígida, se não existir o embate e a crítica promovida por essas figuras deslocadas também não pode existir melhoria e progresso das sociedades em si. O papel adversarial é fundamental pois sem ele não existe questionamento, movimento e nem evolução.

    A Esquerda traz tudo que é considerado tabu pelas normas sociais. Tendo em si uma postura indagadora, que desafia e bate de frente. Nela temos a resistência, o combate, os revolucionários em oposição aos reformistas. A destruição da ordem vigente.

    Nela está o selvagem e o indomável pois nela está tudo que não pode ser contido ou controlado pela Ordem. Seja ela a humana ou até mesmo a divina. E, contendo o que está fora dos limites da Ordem, nela temos o caos, nossos medos, nossas fobias, o que nos paralisa, o que nos entorpece e também o que nos tira da nossa razão, nossas paixões, instintos e prazeres carnais. Enquanto na Direita o racional e o lógico é exaltado, tendo que ser cultivado e fortalecido para que o intelecto bem desenvolvido e treinado supere o instintivo bruto, na Esquerda nosso lado bestial é integrado ao invés de ser negado. Pois assim, ao invés de buscarmos nos religar ao divino negando a carne, negamos esse componente divino externo e universal para nos conectarmos a nós mesmos individualmente através da carne.

    E essa é a diferença de intenção que precisamos ter em mente. Na Direita temos o desenvolvimento da disciplina, da razão e da virtude como um meio para a reintegração com o divino, que é externo e universal. E na Esquerda o desenvolvimento das nossas capacidades questionadoras e opositivas para nos reintegramos a nós mesmos, a nossa individualidade, aos nossos instintos e paixões para que pertençamos a nós mesmos ao invés de pertencer a algo externo ou ao coletivo. É se voltar para dentro e não para fora. Mesmo que, para que sejamos essa versão pura e natural de nós mesmos, precisemos abdicar de sermos integrados a sociedade e a Deus.

    Por isso os bodes expiatórios e os grupos marginalizados estão sempre á Esquerda. Os inconformes, os que não se encaixam, seja por natureza ou por opção. Pois isso é assumir uma postura de negação e de resistência. É ir na direção oposta, fazendo o oposto e tendo a intenção oposta em mente. E, como essa postura é uma postura incômoda socialmente, ela vai causar estranhamento. Ela vai causar desconforto. Sendo isso parte do processo.

    Existe uma ligação natural entre a Esquerda e figuras espirituais opositórias não porque elas sejam ligadas as sombras ou sejam trevosas e malignas mas sim porque são elas que compartilham da mesma postura de combate, de serem os questionadores, aqueles que viram as costas e se negam a obedecer e a se conformar, como já falamos sobre aqui. São eles que compartilham da mesma lógica de priorizar sua independência acima de tudo, a portando como uma coroa e também como uma arma. É porque essas figuras não se integram e se opõe a Ordem. É sobre soberania.

    Na Esquerda a direção que tomamos é abdicarmos do coletivo em prol de nos unirmos a nós mesmos em essência. É o indivíduo se colocando acima dos interesses do grupo. Quebrando os tabus sociais, negando as expectativas, as normas, se afastando mesmo. Inclusive, e principalmente, quebrando as noções da Direita de hierarquia. E, com essa quebra, também vai abaixo a superioridade dos deuses e a visão de que só seremos bons nos desenvolvendo para nos tornarmos unos novamente com eles. Não existe reintegração de separação ou queda dentro da Esquerda. A Esquerda é disruptiva. Ela busca o rompimento e a destruição da Ordem e não a integração a ela.

    A Esquerda rompe paradigmas, desfaz barreiras, muda conceitos e costumes, extrapola propositalmente limites colocados pelas normas sociais e demole velhos sistemas para dar lugar aos seus opostos. Ela não é reformista, tendo em em si a postura de só querer mudar algumas coisas mas preservar outras. Em oposição, é revolucionária. Com discurso e ideias combativas, não deixando pedra sobre pedra em seu caminho. É separativa. Causa cisão ao invés de integração.

    E ela é tida como radical por causa disso, não por representar um pretenso mal enquanto a Direita representaria o bem. A dicotomia bem x mal pertence as visões e as filosofias da Direita. Onde a hierarquia muitas vezes precisa da mentalidade nós versus eles para se sustentar. Afinal, nenhum poder dentro de uma estrutura hierárquica gosta de ter a existência do seu posto questionada. É mais fácil colocar o questionador como maligno do que permitir seu questionamento e, em última instância, a dissolução do seu próprio poder. Perceba que não é sobre bondade versus maldade mas sim sobre bater de frente contra estruturas de poder. Sejam elas sociais ou espirituais.

    E, por natureza, não existe como você estar de ambos os lados ao mesmo tempo. A favor e contra a estrutura simultaneamente. Isso seria em si uma dissonância cognitiva. Não faz sentido pensarmos em nos unir ao coletivo e a fonte criadora universal enquanto também nos separamos delas. Nem sequer em pensarmos fazer uma dessas coisas fazendo um pouquinho da outra conjuntamente para harmonizar. Não existiria nem sequer coerência ou fundamento nisso.

    Ou estamos trabalhando, na nossa jornada espiritual, para nos submetermos e entrarmos em plena harmonia com a Ordem como meio de religar o nosso espírito a fonte criadora, retornando a ela e nos universalizando, perdendo a nossa individualidade em prol da nossa união com o Todo, ou estamos aprimorando a individualização do nosso espírito, focando na nossa liberdade e autonomia, nos separando da Ordem e da fonte criadora para seguir uma existência autônoma por nosso próprio direito e poder.

    As Vias são sobre isso. Ou você estamos nos aprimorando para uma finalidade ou para a outra. Não tem como alguém se unir se separando, e nem se separar se unindo. Dessa forma, seguir um desses caminhos necessariamente torna impossível seguir o outro ao mesmo tempo. Saiba para qual finalidade você deseja se dirigir, qual é a Grande Obra que você quer realizar, e se dedique a ela.

    Pontos de confusão

    Dentro do nosso cenário nacional é relativamente fácil nos depararmos com os conceitos tanto da Mão Direita quanto da Mão Esquerda sendo confundidos, ou mal trabalhados. E é aí que precisamos ter em mente a nossa própria história e contexto cultural. Assim como o quanto que até pouco tempo atrás conhecimento sobre ambas as Vias não era algo acessível no nosso país. O Ocultismo aqui sempre foi um nicho muito pequeno que apenas certos círculos sociais possuíam acesso e contato. E a mudança desse cenário é recente demais. Demais mesmo.

    Em relação as Vias, é de comum conhecimento que as suas definições e terminologias tiveram seu início no trabalho da escritora e ocultista russa Helena Blavatsky que, por sua vez, procurou se inspirar nas linhas do Tantra, Vama Marga e Dakshinachara, para criá-las a partir da sua própria visão. No entanto, a Mão Esquerda só despontou como o movimento que hoje é a partir da construção da obra de Anton Szandor LaVey, que fundou a Igreja de Satã (Church of Satan) em 30 de abril de 1966. Mesmo existindo estudos possíveis para levantarmos e discutirmos antes dele foi apenas ali, na gênese satânica, que a filosofia ganhou a vida que hoje conhecemos e entramos em contato. Foi a partir daquele ponto no tempo e espaço que todas as outras vertentes que possuímos, do luciferianismo até a demonolatria moderna, se desdobraram.

    Sendo que apenas no ano da morte do próprio LaVey, 1997, tivemos pela primeira vez, pelas mãos de poucos pioneiros, o início das tentativas de trazer o Satanismo para as nossas terras. E, com ele, uma semente de ideia sobre a Mão Esquerda (para contextualizar melhor esse período introdutório em solo brasileiro e quem foram essas primeiras figuras, inclusive com suas posturas políticas extremamente criticáveis, indico o livro História do Satanismo de Morbitvs Vividvs).

    Então, do pontapé inicial na década de 60 até o primeiro tímido aceno em cenário brasileiro na década de 90 muito foi produzido, debatido e construído a respeito da Via Sinistrae sem que tivéssemos qualquer tipo de acesso. Ainda engatinhávamos no nível mais básico das ideias de LaVey enquanto o cenário no exterior se desenvolvia a plenos pulmões no início dos anos 2000. Quem esteve nessa época teve que, como dizemos, “abrir caminho no meio do mato com facão”. 

    Nenhum livro ou obra era traduzida e lançada de forma oficial no mercado brasileiro. As poucas editoras que publicavam materiais sobre ocultismo e esoterismo em nosso território estranhavam e não possuíam nenhum desejo de trazer nada relacionado a Esquerda para cá. Eram as pessoas que, de forma individual e autônoma, iam atrás de entrar em contato com as Ordens em outros países para buscar contato e possíveis filiações. Os livros tinham que ser importados ou pela própria pessoa ou por quem tinha contatos fora. Materiais na internet e pdfs então eram coisas que só iam começar a se desenvolver depois. Sem nenhuma real variedade, inclusive.

    Até o presente momento a Bíblia Satânica nunca foi lançada oficialmente no nosso mercado. Títulos de Esquerda só começaram mesmo a ser lançados por aqui através da iniciativa ferrenha de pessoas do meio que iniciaram suas pequenas editoras independentes do final dos anos 2010 pro começo de 2020. De outra forma, nunca seria feito. Tudo o que possuímos oficialmente em nosso território veio desses anos para cá. É pouquíssimo tempo. As temáticas e os assuntos da Esquerda ainda não tiveram tempo e nem espaço para se desenvolver por aqui. Ainda engatinhamos.

    Para se ter acesso a uma vasta diversidade de obras e autores de Esquerda ainda é necessário se ter no mínimo inglês como segunda língua para pegar materiais e obras de fora. O que temos ainda é, em termos gerais, introdutivo. E só o temos pela real paixão, convicção e resiliência dos nossos adeptos, que sempre deve ser celebrada e reconhecida. Pois nosso cenário ainda está em ativa construção. Ainda são poucos os nossos autores e poucas as vozes que estão ativamente trabalhando na construção de conhecimento sobre a Via por aqui. E, por isso mesmo, eu sou tão enfático em ensinar aqui no Guia sobre como estudar, como ir atrás e checar informações, como identificar pessoas e grupos que são realmente sérios e os que não são. Precisamos saber navegar esse meio com critério e discernimento.

    Afinal, muitas são as pessoas que, justamente por este não ser um meio plenamente estabelecido e ser um assunto ainda muito novo para as pessoas daqui, espalham desinformações na cara dura sobre a Mão Esquerda e sobre suas vertentes levando muitas pessoas a acreditarem por não terem como checar essas informações com facilidade, nem terem ainda o costume de fazê-lo. Assim como, infelizmente, continua sendo comum você ouvir as maiores atrocidades em centros holísticos de Direita onde a galera parou no tempo nas ideias dos anos 80 e absolutamente ninguém sabe o que está falando quando tentam falar da Esquerda (mas adoram usar a fonte Águas de Lindóia para afirmar coisas que tiraram apenas de dentro das próprias cabeças).

    Para entender a Esquerda, ouça e consuma conteúdo de quem realmente é de Esquerda com seriedade. Ouça satanistas, ouça luciferianos. E não quem está fora e é alheio a Via. Essas pessoas nunca terão boas definições ou um real conhecimento para passar fora dos seus achismos. Questione o tempo todo o que chega até você. O questionamento é parte intrínseca da Via Sinistrae. E estude. Estude muito. Estude sempre. Pois é isso que nos faz evoluir em nossos caminhos, é isso que nos dá clareza para separar o joio do trigo e é isso que nos proporciona um caminhar com real confiança e autonomia.

    Recomendação de fonte e leitura para aprofundamento do tema: Lords of the Left-Hand Path: Forbidden Practices and Spiritual Heresies de Stephen E. Flowers.

    Até mais!

    Volte ao Guia

    Atenção: A reprodução total ou parcial deste texto é proibida e protegida pela lei do direito autoral nº9610 de 19 de fevereiro de 1998. Proíbe a reprodução ou divulgação com fins comerciais ou não, em qualquer meio de comunicação, inclusive na internet, sem prévia consulta e aprovação do autor.

    As Nove Declarações e as Onze Regras Satânicas

    Fonte: Arquivo Pessoal

    Como aqui no Lunário já pontuamos em nosso texto introdutório Satanismo – Um pequeno resumo histórico, não existe um único Satanismo e cada satanista é, em si mesmo, singular. A Bíblia Satânica de LaVey, apesar da sua importância histórica, é tida mais como uma sugestão do que um livro que deve ser seguido a risca sem considerar as visões e o caminho pessoal de cada adepto. Porém, dentro dela, existem pontos que podemos notar serem bem aceitos e queridos pela comunidade satânica em geral, tanto entre os ateístas quanto entre os teístas. Entre eles estão as Nove Declarações Satânicas e as Onze Regras Satânicas da Terra.

    Vamos vê-las um pouco melhor no texto de hoje? A começar pelas Declarações:

    As Nove Declarações Satânicas

    1. Satanás representa indulgência ao invés de abstinência!
    2. Satanás representa a existência vital ao invés de sonhos espirituais fantasiosos!
    3. Satanás representa sabedoria imaculada ao invés de auto ilusão hipócrita!
    4. Satanás representa bondade para quem a merece ao invés de amor desperdiçado aos ingratos!
    5. Satanás representa vingança ao invés de virar a outra face!
    6. Satanás representa responsabilidade para o responsável ao invés de dar atenção a vampiros psíquicos!
    7. Satanás representa o homem como outro animal, algumas vezes melhor, mas geralmente pior do que aqueles que caminham sobre quatro patas, e que, apesar de todo o “desenvolvimento espiritual e intelectual”, tornou-se o animal mais vicioso de todos!
    8. Satanás representa todos os assim-chamados pecados, pois levam à gratificação física, mental ou emocional!
    9. Satanás tem sido o melhor amigo que a Igreja já teve, pois foi quem a manteve rica durante todos esses anos!

    Resumindo bem todo o apanhado de ideias desenvolvido ao longo da Bíblia Satânica, as Nove Declarações nos dão uma síntese da postura individualista e autoindulgente de LaVey. Temos a figura de Satã como um símbolo, representando os pontos vitais da doutrina, onde colocamos o nosso foco na existência física, material, e no momento presente acima das promessas de recompensas espirituais futuras que nos acostumamos a ouvir desde muito cedo pela cultura predominantemente cristã no qual ainda nos vemos inseridos.

    Temos nelas uma postura muito mais focada no prático, no real, do que no espiritual. Que nos fala para pensar no hoje, não nos negando á toa, tendo o cuidado de valorizar as pessoas que realmente merecem ao nosso redor ao invés de alimentar aqueles que só pensam no próprio proveito. Também não temos o ser humano erguido acima da criação em seu texto mas sim como parte dela. E uma parte que, por muitas vezes, pode ser muito mais cruel do que sábia. Além da alfinetada característica, ao final, de nos lembrar que a Igreja não seria nada do que ela hoje é sem ter se imposto através do medo.

    Para as completar, também temos as Onze Regras:

    As Onze Regras Satânicas da Terra

    1. Não dê opiniões ou conselhos a menos que alguém os peça.
    2. Não conte seus problemas aos outros a menos que você esteja certo de que eles estão dispostos a ouvi-los.
    3. Quando no lar de alguém, demonstre-lhe respeito, caso contrário nunca vá lá.
    4. Se um convidado em seu lar o irrita, trate-o com crueldade e sem piedade.
    5. Não avance sexualmente a menos que lhe seja dado o consentimento.
    6. Não pegue algo que não lhe pertença, a menos que seja um fardo para a outra pessoa ou que ela peça para ser livrada dele.
    7. Esteja ciente do poder da magia se você a empregou com sucesso para obter seus desejos. Se você negar o poder da magia após tê-la utilizado, perderá tudo o que obteve.
    8. Não reclame de nenhuma coisa a qual não precise se sujeitar.
    9. Não faça mal a criancinhas.
    10. Não mate animais não humanos a menos que você seja atacado ou que o animal seja utilizado como alimento.
    11. Ao andar em território aberto, não perturbe ninguém. Se alguém o perturbar, peça para parar. Se ele não parar, destrua-o

    Refletindo bem a postura de grande parte dos adeptos da Via Sinistrae como um todo, as Onze Regras são o grande “não mexa com ninguém sem necessidade, seja uma pessoa respeitosa e razoável, mas também não tolere a merda de ninguém” de LaVey. Tendo como pontos claríssimos a proibição de qualquer tipo de abuso sexual e de maldade contra crianças e animais, sendo esses pontos unânimes e cristalinos por toda a Esquerda.

    Agora, além destas declarações e regras, existiria algo que o satanismo LaVeyano teria como proibições? Como uma religião tão focada na liberdade de seus adeptos, proibição aqui não seria a palavra certa. Mas, de fato, alguns anos após a publicação da Bíblia Satânica a Church of Satan colocou, para seus membros, algumas contra indicações. Posturas que, para eles, não refletem o que deveria ser a postura de um satanista saudável. Assim surgiram, como vemos a seguir, os Nove Pecados:

    Os Nove Pecados Satânicos

    1. Estupidez — Ela está no topo da lista dos pecados satânicos e é o principal pecado do satanismo. É uma pena a estupidez não ser dolorosa. Uma coisa é ignorância, mas nossa sociedade incentiva a estupidez. Isso tem a ver com as pessoas indo onde quer que lhes é dito para ir. A mídia promove a estupidez como uma postura cultivada que não só é aceitável, como é louvável. Os satanistas precisam aprender a enxergar através do que lhes é dito e não concordarem em agirem como estúpidos.
    2. Pretensão — Uma postura vazia pode ser muito irritante e não aplica as principais regras da Magia Menor. Está em pé de igualdade com a estupidez por manter o dinheiro circulando nos dias de hoje. Cada um é levado a se sentir como um fardo pesado, tendo dinheiro ou não.
    3. Solipsismo — Projetar suas reações, respostas e sensibilidades em alguém é provavelmente o menos responsável que você pode ser, e é algo muito perigoso para os satanistas. É o erro de esperar que as pessoas lhe deem a mesma consideração, cortesia e respeito que você naturalmente as dá. Elas não darão. Ao invés disso, os satanistas precisam concentrar suas energias para aplicar o ditado “faça com os outros o que eles fazem com você”. Dá trabalho para a maioria de nós e requer constante vigilância, mas lhe tira a ilusão confortável de que todos são como você. Como dito, certas utopias seriam ideais em uma nação de filósofos, mas infelizmente (ou talvez felizmente, de um ponto de vista maquiavélico) estamos bem distantes disso.
    4. Auto-ilusão — Consta nas “Nove Declarações Satânicas”, mas merece ser repetido aqui. É outro pecado principal. Não podemos nos curvar a quaisquer das vacas sagradas que nos são apresentadas, incluindo os papéis que esperamos desempenhar. A única ocasião onde a auto-ilusão é bem-vinda é por diversão, e com cuidado. Mas neste caso, não é auto-ilusão!
    5. Conformismo de massa — É óbvio do ponto de vista satanista. Não há problema com os desejos de alguém, desde que eles os beneficie. Mas apenas os tolos seguem o bando, deixando uma entidade impessoal lhe dizer o que fazer. A chave é escolher um mestre sabiamente, ao invés de ser escravizado pelos caprichos de muitos.
    6. Falta de perspectiva — Novamente, esta pode trazer grande dor para o satanista. Você jamais deve perder a visão de quem e o que você é, e que ameaça pode ser, por sua própria existência. Estamos fazendo história agora e a todo momento, todos os dias. Sempre tente manter uma ampla visão histórica e social na mente. Esta é uma importante chave tanto para a Magia Menor quanto para a Magia Maior. Veja os padrões e encaixe as coisas se você quer que as peças fiquem em seus devidos lugares. Não se abale pelas impressões da massa: tenha consciência de que você está trabalhando em um outro nível, além do resto do mundo.
    7. Negligência de ortodoxias do passado — Esteja alerta de que esta é uma das chaves para a lavagem cerebral das pessoas de modo a aceitar algo diferente e novo, quando na realidade é algo que já foi aceito mas agora é apresentado numa nova embalagem. Deliramos com a genialidade do suposto criador e esquecemos do original. Isto forma a sociedade alienada.
    8. Orgulho contraproducente — Esta segunda palavra é importante. Orgulho é bom, até a hora em que você começa a “jogar o bebê fora junto com a água da banheira”. A regra do satanismo é: se funciona para você, ótimo. Quando parar de funcionar para você, quando você está no canto da parede e a única saída é dizer “sinto muito, cometi um erro, desejo que possamos nos ajustar de algum modo”, então o faça.
    9. Falta de estética — Esta é a aplicação física do fator de balanceamento. Estética é importante na Magia Menor e deve ser cultivada. É óbvio que ninguém pode ganhar dinheiro fora dos padrões clássicos de beleza e forma na maior parte do tempo, sendo assim desencorajados na sociedade consumista; mas uma atenção para a beleza, para o balanceamento, é uma ferramenta satanista essencial e precisa ser aplicada para a maior eficácia mágica. Não é o que é supostamente prazeroso: é o que realmente é. Estética é algo pessoal, reflete a natureza individual, mas existem configurações universalmente agradáveis e harmoniosas que não devem ser negadas.

    Apesar do tom de escrita da Church of Satan estar longe de ser um dos meus favoritos em diversos momentos, nos Nove Pecados podemos ver alguns conceitos e ideias muito interessantes como não permitir que o seu orgulho te atrapalhe, ter noções claras através do estudo daquilo que já foi feito para não se deixar levar por pessoas que querem se passar por inovadoras reinventando a roda, sempre saber quem somos e quem queremos ser e termos perspectivas de futuro que se alinhem a isso, não se render ao conformismo, cuidar da própria aparência e não projetar os próprios problemas e faltas nos outros.

    Apesar de não serem regras estritas, tanto as Nove Declarações quanto as Onze Regras e os Nove Pecados trazem reflexões e pontos de vista discutidos e bem integrados as mais diversas vertentes satanistas que temos hoje em dia. Alguns pontos geram mais discordância que outros, mas o foco no indivíduo, a auto preservação e a responsabilidade individual tendem a refletirem na cultura da comunidade satânica como um todo.

    E aí, já tinha ouvido falar delas antes?

    Até mais!

    Volte ao Guia

    Fontes:  The Satanic Bible de Anton Szandor LaVey, The Eleven Satanic Rules of the Earth [1], The Nine Satanic Statements [2], The Nine Satanic Sins [3]

    Atenção: A reprodução total ou parcial deste texto é proibida e protegida pela lei do direito autoral nº9610 de 19 de fevereiro de 1998. Proíbe a reprodução ou divulgação com fins comerciais ou não, em qualquer meio de comunicação, inclusive na internet, sem prévia consulta e aprovação do autor.

    Resenha – O livro de Lilith de Barbara Black Koltuv

    Fonte: Arquivo pessoal

    Na resenha de hoje nos afastamos um pouco da literatura ocultista e nos aproximamos da abordagem psicológica da Dr. Barbara Black Koltuv em sua obra O Livro de Lilith – O Resgate do Lado Sombrio do Feminino Universal.

    Ficha Técnica

    Autora: Barbara Black Koltuv

    Editora: Cultrix

    Idioma: Português e inglês

    Páginas: 184

    Ano: A primeira edição deste livro é de 1989 e a analisada nesta resenha é a segunda de 2017

    Sinopse do livro

    Lilith, a primeira Eva ou a mulher que tentou Adão é uma das formas do Eu feminino que personifica os aspectos negligenciados e rejeitados da Grande Deusa.

    Este livro é uma fascinante antologia de contos mitológicos, antigos e modernos, interpretados pela autora, psicóloga e analista junguiana, que demonstra como e por que foram feitos tão grandes esforços para banir a figura de Lilith da consciência humana e por que, apesar desses esforços, estamos sentindo outra vez a sua ascensão, agora com novas interpretações e significados.

    Resenha

    É importante começarmos essa resenha deixando claro que O Livro de Lilith da Dr. Koltuv é muito mais um livro de psicologia do que de qualquer outra coisa. E, se você o pegar com qualquer outro tipo de expectativa, é bem provável que a sua experiência de leitura não saia exatamente como o previsto. Ela analisa sim, e bastante, a parte mitológica de Lilith, mas focando apenas no que se refere a cultura judaica e apenas como suporte para as suas análises dentro do seu campo de pesquisa. Se você não tem o costume ou nunca pegou esse tipo de literatura antes a sua experiência como leitor pode ser um pouco truncada no primeiro capítulo, fluindo um pouquinho só a mais somente nos seguintes. Tanto pelo estilo da escrita que você vai encontrar como pela própria proposta da obra mesmo.

    Pontos Positivos

    O maior ponto positivo que eu consigo destacar é a extensa pesquisa em mitologia judaica feita pela Dr. Koltuv. Como o foco dela esteve unicamente na Lilith presente no misticismo judaico ela traz boas fontes de pesquisa se você, como leitor, quiser ter esse foco também. Como o meu foco não se encontra na cultura judaica em nenhum momento da prática que eu construo, acaba não sendo tão útil assim para mim em particular. A passagem de Lilith pelo judaísmo e por seu misticismo é definitivamente parte da sua caminhada junto a humanidade e é importante conhecê-la até para sermos capazes de contextualizar corretamente o que ouvimos vindo da Kabbalah sobre ela. No entanto, não é o que a resume. Então, é bom termos conhecimento dessa parte, mas não é necessário acharmos que é tudo que existe. Vá com essa mentalidade e aproveite a bibliografia para suas pesquisas pessoais!

    Pontos Negativos

    É importante também destacar que as ideias da autora sobre o ressurgimento do feminino, tratadas no livro, tem muito das marcas e da carga que o discurso feminista tinha em meados dos anos 80/90. A Dr. Koltuv se formou em psicologia na Universidade Columbia em 1962 e suas especializações correram até a década de 80, sendo fácil localizarmos seus valores como pertencentes a mentalidade e a cultura da sua época. Sendo essa a “pegada” intelectual da obra. Em quesito de pesquisa mitológica, apesar de ter uma boa bibliografia, como já dito, o foco se constrói apenas na parte judaica, que acaba sendo usada unicamente como um totem da supressão feminina dentro de culturas patriarcais. O que é, ao meu ver, extremamente redutor.

    Lilith não é, originalmente, uma figura mitológica judaica. Suas origens se estendem desde os épicos mesopotâmicos, como nos registros da Epopeia de Gilgamesh, para apenas depois ser incorporada pelo misticismo judaico. Sua posição como suposta primeira mulher de Adão é mais recente ainda, tendo tido início apenas no período medieval graças ao Alfabeto de Ben-Sira, que tinha conotações cômicas, como você pode ler aqui. E, ao meu ver, o foco excessivo na narrativa da primeira esposa de Adão que foi dado na literatura de inspiração feminista décadas atrás sobre Lilith foi o que aos poucos a descaracterizou completamente de um ser mitológico muito mais antigo e complexo para uma versão diluída e simplista de uma figura que teria uma agenda política e valores completamente anacrônicos a si mesma.

    Não sendo eu um estudante de psicologia mas sim um praticante da Mão Esquerda, as minhas opiniões e a relação que eu construo com Lilith enquanto figura espiritual sempre acabam se distinguindo muito de quem a analisa apenas no âmbito do simbólico. Principalmente se esse âmbito faz um recorte tão seco na história para apenas focar no que quer. As análises de alguns pontos podem até ser, em algum nível, interessantes. Mas acaba faltando profundidade e complexidade em todos eles justamente pelo que a autora escolheu deixar de fora.

    Acessibilidade: É um livro de fácil acesso num geral e, inclusive, bem baratinho. Se você realmente precisar, consegue achar por pdf também sem problemas.

    Até mais!

    Volte ao Guia

    Atenção: A reprodução total ou parcial deste texto é proibida e protegida pela lei do direito autoral nº9610 de 19 de fevereiro de 1998. Proíbe a reprodução ou divulgação com fins comerciais ou não, em qualquer meio de comunicação, inclusive na internet, sem prévia consulta e aprovação do autor.

    Primeiros passos – Sobre Mestres e Sacerdotes

    Fonte: Arquivo pessoal

    Um dos pontos comuns entre a maioria das pessoas recém chegadas nas margens de entrada da Mão Esquerda é a da procura por uma figura que lhes seja referencial. Mais especificamente, por um mestre ou sacerdote/sacerdotisa do qual elas possam aprender e a quem elas possam se referir. É de se perder as contas o número de vezes em que eu, e outras pessoas que conheço do meio, já recebemos pedidos de indicações para isso. E, apesar de não me opor particularmente as pessoas buscarem figuras como essas, sinto que, no contextos extremamente particulares da Mão Esquerda, os recém chegados sempre partem dos pontos errados para isso.

    Em primeiro lugar, tenhamos em mente que quando falamos sobre sacerdócio falamos sobre uma posição que é, por definição, religiosa. Sendo reservada para pessoas que estão ou no topo ou em posições de destaque da hierarquia de religiões específicas. A Mão Esquerda, por si, como vimos no texto que fala um pouco mais de suas definições, não é uma religião. E a vasta maioria das suas vertentes também não são religiosas. Até pela forte conotação de oposição a hierarquias e da subversão as normas que faz parte da postura da Esquerda como um todo.

    Dentro do Satanismo LaVeyano temos tradicionalmente a Church of Satan, mas todo o seu contexto histórico é o de se definir como religião para bater de frente com o cristianismo estadunidense. Então perceba atentamente que mesmo quando se é criado um movimento religioso na Esquerda ele se cria para ser contra cultural. Para ser uma insurreição contra aquilo que é posto como norma social. É um ato de rebelião. Mas a Church of Satan resume o satanismo? Definitivamente não. Existe muito mais dentro do Satanismo do que ela. E eu digo isso como algo positivo. Dentro do Luciferianismo temos menos contexto religioso ainda. A Demonolatria, entre as correntes de Esquerda, é a que mais se coloca como religiosa de fato. Mas você não tem, mesmo nela, uma igreja central.

    Lembre-se sempre que é na Mão Direita que temos desenvolvidos os temas da ordem, da hierarquia, da coletividade e da integração. A Mão Esquerda, como movimento opositor, é um disruptor da ordem. Na Esquerda temos o questionamento e a dissolução das hierarquias, temos a individualidade e o trabalho com o que é segregado e marginalizado. De forma que, por natureza, é um caminho trilhado majoritariamente por indivíduos autônomos e não por aqueles que estão inseridos em instituições. Temos algumas Ordens, claro. Mas eu não diria de forma alguma que elas são para treinar iniciantes e sim para pessoas que já tem uma ótima de uma experiência e querem desenvolver áreas e tópicos específicos onde seria muito interessante o fazer ao lado de outras pessoas com o mesmo objetivo.

    Então, aqui já nos desfazemos da ideia de buscar estruturas religiosas e instituições na Esquerda da mesma forma e com os mesmos propósitos em que elas existem na Direita. Não só não dará certo como você pode acabar em becos muito estranhos e com gente deveras esquisita, como eu já alertei aqui e aqui.

    Em segundo lugar, quando temos sacerdotes existindo fora das estruturas fixas de religiões estabelecidas, eles sempre existem por causa da demanda de alguma comunidade em específico. Sendo eleitos por essa comunidade como os mais indicados, em meio a eles, para o papel de agirem como líderes espirituais, atuando como pontes entre as pessoas e o divino e sendo os responsáveis por liturgias, ritos, cerimoniais e demais serviços de cunho espiritual para os outros integrantes do coletivo. Assim, apesar dessas pessoas não serem necessariamente colocadas em seus postos por uma religião específica elas sempre o são por seu grupo. Afinal, a natureza do ofício destes é essencialmente comunitária.

    Fora dessas duas categorias tradicionais, dentro das particularidades do cenário pagão moderno, existem muitos sacerdotes e sacerdotisas autônomos por aí. São pessoas que se dedicam a uma divindade, ou panteão, em particular. E, apesar deles não terem uma comunidade ou fazerem parte de uma religião oficialmente, sua devoção toma esse rumo. E eles são, apesar de solitários, pessoas que você pode procurar para aprender sobre suas divindades, para entrar em contato com elas, ou mesmo para pedir toda a sorte de encargos que se pode pedir de uma figura sacerdotal num geral. Perceba que, mesmo quando falamos de figuras autônomas, o servir ao outro está sempre centralizado no que significa ser um sacerdote ou uma sacerdotisa.

    E esse servir não inclui apenas outras pessoas mas as divindades com as quais existe o comprometimento em si. O sacerdote serve a sua divindade. E se coloca como servo em nome dela não apenas em sua própria vida mas na vida daqueles que o procuram ou precisam dele para isso. E essa posição de servidão, por definição, não é algo que você vai encontrar na Esquerda. Pois na Esquerda não nos colocamos abaixo do divino como servos e não nos dedicamos ao outro como foco principal.

    Encontramos títulos dentro de Ordens, pois elas tem um propósito prático em seu meio, servindo para indicar o desenvolvimento de seus indivíduos ou qual é a posição hierárquica dos seus integrantes. Mas, fora do contexto das Ordens e Templos em si, seus títulos geralmente perdem o sentido. Inclusive o título de Mestre. Sendo usados facilmente por inúmeros charlatães que gostam de se imputarem qualificações apenas pelo peso e pelo brilho que elas proporcionam a eles.

    E, como já temos um texto sobre como identificar grupos abusivos, aqui teremos como notar se a coroa dourada de algum professo líder é mesmo de ouro ou se ela é apenas um artifício para atrair os desavisados:

    1- Quais são as suas credenciais?

    Pesquise os antecedentes de qualquer um que se coloque como Sacerdote ou como Mestre para você. Se a figura se coloca como sacerdotal, de onde veio? Por quais Ordens já passou? Faz parte de algum Templo? Qual foi a sua trajetória? Se temos alguém que se coloca como um mestre, é mestre no que exatamente? Como, em quais lugares e com quais pessoas adquiriu sua maestria? Essa pessoa dá nomes identificáveis que você poderia entrar em contato ou localizar? Jurar juradinho que fez parte das “maiores e mais importantes Ordens” sem citar nomes ou rastro não vale. Qualquer um pode chegar em qualquer lugar e dizer que participou de vários grupos por aí. Isso não quer dizer absolutamente nada. Sem credenciais, sem negócio.

    “Ah mas fulaninho é uma figura autônoma.” Ok, então vamos ao segundo tópico.

    2 – Com qual qualificação?

    Figuras autônomas sérias, assim como quem é filiado a grupos específicos, tem trajetórias públicas reconhecíveis. Você é capaz de achar, e elas mesmo disponibilizam, seu histórico. Onde elas começaram, como foi a jornada, se elas fizeram cursos e quais, se foram treinadas em algum lugar ou por alguém, e suas contribuições para suas comunidades num geral. Se já escreveram livros, participaram de revistas e zines, qual tipo de pesquisa e bibliografia usam como base, se possuem algum site ou rede social e por aí vai. E isso nos leva ao próximo tópico.

    3 – Como contribuem?

    Como já vimos, títulos não são apenas nomes bonitinhos para se ter mas sim posições de responsabilidade. Sacerdotes tem o serviço como principal função. Sendo assim, como eles servem a própria causa que dizem defender e como ajudam e enriquecem seus meios? Eles disponibilizam o conhecimento que eles possuem de qual forma? Eles são autores, tendo livros, contribuindo em revistas ou tendo algum blog ou rede social? Eles tem serviços de auxílio e acolhimento para aqueles que precisam? Eles se preocupam em como suas palavras e ações vão afetar o seu meio e outras pessoas? Eles se portam com respeito e responsabilidade?

    Se for alguém que diz ser Sacerdote de alguma divindade, o que ela dispõe de serviço social em prol dessa divindade? Essa pessoa é uma fonte de informação confiável sobre essa figura divina? Quais recursos ela disponibiliza para as pessoas? Esse Sacerdote ou Sacerdotisa sabe conduzir e ensinar as pessoas em direção a sua divindade de forma correta e reverente? Quais projetos ela possui? O que ela está fazendo de relevante no momento? Se for alguém que se diz Mestre ou Mestra é a mesma coisa. Ela ou ele estão usando sua maestria como? Como provam que realmente são o que dizem ser? Pois isso deve ser feito através de atos, claros e consistentes, e não só através de se encher o peito e falar grosso. Se alguém clama para si uma posição de importância e relevância social deve existir um esforço e um mérito através do qual essa pessoa o conquiste e o mantenha.

    4 – Como são reconhecidos em seu meio?

    Outro bom indicativo para sabermos se uma figura que se coloca como Sacerdotisa, Sacerdote ou Mestre é fidedigna ou não é percebermos como as pessoas do meio que ela clama fazer parte a reconhecem. Fulano falou que é um Mestre ou um Sacerdote luciferiano? Além de verificar os outros tópicos acima observe como outros luciferianos falam dessa pessoa. Ele sequer é conhecido? E o sendo, as pessoas o reconhecem como uma figura de referência ou existem críticas válidas referentes a ele? Ninguém é tão alecrim dourado a ponto de ter todo um meio o criticando e as críticas não virem de um local válido. Onde existe fumaça podemos sim encontrar fogo. Fique de olho.

    5 – Qual é o seu comportamento?

    Ao olharmos para uma figura que se coloca como um ponto de referência também é importante notarmos como ela se porta e se conduz. Se ela transmite firmeza, seriedade, profissionalismo ou não. Alguém que vive de caçar briga e polêmicas demonstra que, se não for causando ira constantemente, não conseguiria ser relevante. Fuja dos sujeitos que só aparecem porque vivem discutindo, vivem gerando polêmica e vivem usando sensacionalismo ao próprio favor. Se essas pessoas tivessem um real conteúdo seriam conhecidas por ele e não por ter apenas a própria inconveniência para compartilhar com o mundo.

    6 – Para além das aparências

    É muito comum, em tempos de redes sociais, que a nossa capacidade de julgamento perceba a aparência que as pessoas projetam muito antes que possamos perceber seus reais discursos. A estética, o número de seguidores e boas estratégias de marketing muitas vezes nos fazem valorizar muito certas figuras antes de conseguirmos notar suas incoerências. E, aqui, todo cuidado é pouco. Aqueles que sabem lidar com os algoritmos das redes sociais em que se inserem facilmente conseguem fazer seus perfis crescerem. O que não significa, no entanto, que essas pessoas tenham de fato o que dizer. Elas só sabem jogar muito bem o jogo. E, muitas vezes, de forma extremamente suja. Usando qualquer pauta que esteja em voga no momento da pior forma, só para ampliar seu próprio engajamento.

    Seja crítico com o que você consome. Preste atenção no que de fato é dito. Em como é dito. Verifique as informações que chegam até você. Não coloque ninguém em pedestais. Veja através das aparências e do status que querem te vender. Lembre-se que, dentro da Mão Esquerda, não estamos para seguir mas sim para guiarmos a nós mesmos a nossa própria Apoteose.

    Até mais!

    Volte ao Guia

    Atenção: A reprodução total ou parcial deste texto é proibida e protegida pela lei do direito autoral nº9610 de 19 de fevereiro de 1998. Proíbe a reprodução ou divulgação com fins comerciais ou não, em qualquer meio de comunicação, inclusive na internet, sem prévia consulta e aprovação do autor.

    Quem são os Daemons?

    Fonte: Asmodeus, como ilustrado no livro Dictionnaire Infernal de Collin de Plancy – Edição e arquivo pessoais

    Quando, na Mão Esquerda, falamos sobre daemons, é um lugar comum que a primeira reação seja a do medo e da desconfiança. E não é de se estranhar, quando levamos em consideração que a nossa cultura foi e ainda é moldada pelo pensamento e pelo imaginário cristão. Toda ideação que formamos sobre esses seres é e sempre foi, em si, muito caricata. E falar sobre eles acaba sendo também falar sobre história, sobre como a nossa sociedade evolui certos conceitos, sobre o que ela perseguiu, o que ela renegou, e sobre uma miríade de povos que tiveram o olhar desvirtuado e colonizador europeu sobre suas crenças e sobre suas próprias figuras mitológicas.

    Pois, a classe de seres que hoje chamamos de daemons, provém de um rico caldo cultural formado pela religiosidade da Europa Ocidental que, em si, bebeu vastamente de elementos helênicos e romanos e se apropriou de muita coisa proveniente da cultura judaica e do antigo Oriente Médio num geral. De forma que aqui, neste texto, eu não tenho nenhuma pretensão de esgotar o tema, visto que isso seria inviável pela sua vastidão. Mas sim, de propor uma luz inicial.

    Como já citado em nosso texto sobre apadrinhamentos, que você pode ler aqui, é importante saber que a visão que temos na Esquerda sobre esses seres difere muito da visão cristã. Até mesmo por uma questão de conceitos iniciais. A palavra que usamos de forma tão comum, demônio, é uma variação em latim do termo grego daímôn, que era usada para se referir a seres semidivinos de natureza neutra, e não apenas maligna como podemos ser levados a crer.

    Estes seres eram complexos, multifacetados, e poderiam estar associados a natureza ou a certas facetas do temperamento humano, fazendo a ponte e a intermediação entre nós e o espiritual. Seu papel, na cultura grega, difere muito do papel dos demônios dentro do cristianismo. No entanto, foi o termo que foi apropriado para abrigar, dentro de si, uma infinidade de seres, espíritos e divindades de diversas culturas para que elas sofressem um processo que, hoje, chamamos de demonização. O processo de descaracterizar algo para o tornar ruim, negativo e pejorativo.

    A beleza da expressão religiosa de diversas culturas e grupos, com seus ricos costumes e práticas, foram completamente engolidos neste processo. Transformados em coisas que nunca foram inicialmente. Tirados de seus lugares e contextos para sofrer uma distorção vulgar e extremamente preconceituosa. Um processo que aconteceu por milhares de anos e, em muitas instâncias, ainda acontece. Fruto do mesmo velho medo de reconhecer o outro como humano, e não como um vilão maquiavélico, simplesmente por esse outro possuir crenças e costumes diferentes dos nossos.

    É nisso que vemos muitos dos 72 daemons da Goetia, por exemplo, serem versões deturpadas de divindades pagãs de diversas culturas muito antigas. Colocados como menores por pura rivalidade. Afinal, as forças que abençoam aqueles que vemos como nossos inimigos não seriam, elas mesmas, malignas a nós?

    A situação piora bastante se essas forças não são descritas, dentro de suas culturas, como apenas benignas mas sim como figuras complexas. Num pensamento dicotômico, onde as coisas devem ser apenas boas ou apenas más, existe pouco espaço para nuances. E assim o pensamento sobre muitos seres foi não apenas deteriorado como também simplificado até os tornar indistinguíveis do que originalmente eles eram.

    Sempre existiu riqueza e encantamento no mundo. Na maneira como nossa espécie lidou e traduziu as forças ao seu redor. Forças complexas, cheias de mistério e poder. Forças que eram encontradas tanto nas chuvas que vivificavam o solo quanto nas tempestades que o arrasavam. No movimento dos astros no céu e na força das marés. Nos desafios impostos pelos desertos e espaços áridos com seus predadores e nas bênçãos dos oásis e dos campos frutíferos. Uma complexidade que, ao longo da história, foi de pouco em pouco desvalorizada e saqueada. Mas que ainda está lá, nos meandros daquilo que deixamos para trás. E que pode ser recuperada através das mãos que se dispõe a esse trabalho. Dentro da Mão Esquerda, passando também por uma ressignificação. Onde não só nos dedicamos a pesquisar esses processos históricos mas também a olhar para esses seres sobre novas óticas, nos desfazendo dos medos e dos preconceitos que a eles foram adicionados. E nos permitindo sair da velha dicotomia para que uma visão mais complexa, com suas nuances e sua diversidade, possa voltar a tona onde é devida.

    Temos, dentro da demonologia, relações muito profundas, que afundam na história, de trocas culturais, sincretismo e disputas. As encontraremos, naquilo que herdamos, majoritariamente vindo das relações entre as culturas suméria, babilônica e judaicas. Assim como o peso dos processos europeus, com suas releituras, seus folclores regionais, suas idas e suas vindas. De forma que, para cada nome demoníaco que chegou até nós hoje em dia, podemos traçar as linhas históricas mais complexas e diversas imagináveis.

    Mas podemos, também, as estender a todas manifestações culturais e religiosas da humanidade. Onde sempre teremos, não importa em qual local ou época, seres que trazem e representam forças consideradas adversárias. Sendo assim vistas por estarem associadas a manifestações naturais agressivas a vida ou, pior ainda, a sociedade ao lado que rivaliza com a nossa. Afinal, o fator social sempre se entranha na figura do adversário, muitas vezes indivisivelmente. Colocando as figuras que representam os medos que sentimos do escuro muito próximas do medo que sentimos do outro. Do diferente. Do que não se encaixa. Do que questiona e trás consigo revoltas por isso.

    Tornando, assim, as figuras espirituais que trazem e representam essas questões seres extremamente intrincados e multifacetados. E que merecem assim tratados ser. Não como seres que são apenas isso ou apenas aquilo, mas sim como manifestações plurais e ricas daquilo que nos desafiou ao longo dos conflitos e da evolução de nossa história. Como chamas representantes do que a Corrente do Adversário realmente é. Aquilo que nos desafia, que nos testa, e que traz, através de seus dilemas, nossas oportunidades de aprendizagem e crescimento.

    Eles são todos os seres catalogados como antagonistas. Tanto por serem aqueles que trazem as forças contrárias da natureza, como Pazuzu, rei dos demônios do vento mesopotâmico, que trazia consigo a simbologia das estiagens e da fome proporcionada pelas estações secas, mas que também protegia mulheres grávidas e desviava daqueles que o chamassem a dor de diversas doenças que eram atribuídas a ação dos ventos provenientes do oeste, quanto aqueles que foram demonizados ao longo dos processos históricos que sofreram, como Baal, um dos principais deuses fenícios, que regia o clima, a fertilidade, a guerra e as tempestades, sendo um grande senhor dos céus.

    Pazuzu, em sua cultura original, sempre teve em si a conotação de ser uma força agressiva, capaz de destruição tanto quanto de conferir proteção, enquanto Baal foi colocado em uma posição cada vez mais antagônica politicamente através da história. Até termos, derivado dele, o Bael goetico, por exemplo. Hoje em dia, ambos representam forças demonizadas por nós. E, se interessar por eles, é aprender o caminho que eles traçaram junto aos povos pelos quais percorreram. E é lidar com as dificuldades, testes e desafios que eles trazem. Não só através das suas conotações originais, mas também do que eles adquiriram com o passar dos séculos. É aprender com as suas complexidades. Desatando os nós do intrincado novelo histórico ao qual eles foram atados. Os tirando de uma visão simplista de algo apenas maligno sem que, para isso, precisemos os colocar também como apenas benignos. Dando lugar novamente a uma composição e uma visão mais profunda e plural.

    Nisso, lidar com eles, assim como lidar com quaisquer figuras que integram a Corrente do Adversário, é uma tarefa que requer muito comprometimento e muita seriedade. Não só em estudo e pesquisa, que são sempre e constantemente necessários, mas em uma entrega a forças que transformarão quem somos em essência. Afinal, escolher dançar com demônios sempre é escolher dançar com as nossas próprias sombras. Tanto pessoais quanto coletivas. Em meio aos pálidos escombros formados pelos conflitos e pelas guerras que nossa espécie deixou e ainda deixa em sua jornada através deste universo.

    Até mais!

    Fonte e indicação de leitura: O dicionário dos Demônios de M. Belanger

    Volte ao Guia

    Atenção: A reprodução total ou parcial deste texto é proibida e protegida pela lei do direito autoral nº9610 de 19 de fevereiro de 1998. Proíbe a reprodução ou divulgação com fins comerciais ou não, em qualquer meio de comunicação, inclusive na internet, sem prévia consulta e aprovação do autor.