As Ordálias e a natureza do Caminho

Fonte – Arquivo pessoal

Se existe um ponto espinhoso na maior parte dos caminhos espirituais esse ponto são as ordálias. A concepção original do termo vem das antigas provas judiciárias onde a intervenção divina era usada para se determinar a culpa ou a inocência de um acusado. Este acusado poderia ser exposto a diversos tipos de tortura ou provas físicas, como andar sobre um caminho feito de carvões acesos em brasa, por exemplo, sendo considerado inocente caso saísse sem qualquer dano ou ferimentos. Com a intervenção divina também podendo ser atestada através de manifestações específicas da natureza durante o processo.

Seu uso, compreensivelmente, foi sendo deixado de lado com o passar tempo. Afinal, nele tínhamos a busca constante pelo milagre em situações onde ele não era de fato preciso. Tentar forçar compulsoriamente uma manifestação espiritual nunca foi e nem nunca será é a melhor forma para se decidir nada judicialmente.

Agora, deixando a parte forense e o que é de ordem mundana e prática de lado, o termo nunca de fato desapareceu do seu local mais apropriado, que é o religioso em si. Sendo usado também dentro do ocultismo para indicar as provações críticas aos quais seus adeptos são expostos ao longo de seus desenvolvimentos. Dentro das vertentes da Mão Direita a conotação de juízo divino se mantém praticamente como na concepção original. Não é o meio que testará o adepto, nem mesmo seus superiores ou professores, mas sim o componente divino. E, dentro dos caminhos da Mão Esquerda, esse componente tende a ser, naturalmente, infernal e adversarial. Sendo aqui que a nossa conversa, neste texto, realmente começa.

Temos as ordálias sendo mais abordadas dentro das Ordens, onde temos toda uma estrutura para nos ajudar a dar forma as nossas jornadas. Mas eu não poderia fazer um Guia sem falar delas, sem falar das provações do Caminho. Pois nem todo mundo tem as condições de se filiar a uma Ordem bem estruturada e responsável para aprender sobre elas em um ambiente seguro e regrado, tendo o auxílio necessário para as vencer e para aprender a como lidar com elas.

Nós nem sequer temos Ordens de Esquerda para isso em cenário nacional ainda, na verdade. A estrutura que temos, em cenário brasileiro, é muito mais ampla e bem desenvolvida em relação a Mão Direita do que em relação a Esquerda. Talvez um dia isso mude, mas agora, a maioria de nós é praticante solitário por sermos um meio que ainda tem muito o que desenvolver. A gente se vira com o que tem, faz o que pode, e se vira como dá. Então, que eu seja a figura que vai falar sobre.

Pois incrivelmente não foram as Ordens e as figuras sacerdotais que eu tive nos anos e anos em que eu estive na Mão Direita, com toda sua estrutura e com tudo aparentemente “certinho”, que me ensinaram a lidar com ordálias. Aqueles que realmente me ensinaram, me estruturaram e me auxiliaram em relação a elas foram justamente os infernais.

O Caminho Tortuoso

Por toda a minha jornada, meus passos sempre foram por trilhas mais escuras do que a das pessoas ao meu redor, nos meios dos quais eu participei. Todas as divindades e figuras espirituais que vieram até mim desde o começo sempre foram as ligadas a guerra e a morte. Desta forma, meu caminho sempre possuiu energias mais densas e provas mais secas do que as da maioria. E eu não recebia suporte no nível em que eu realmente precisava. Aliás, como novato, eu não tinha nem sequer parâmetros para discernir qual era o nível de suporte de que eu realmente precisava. Eu só fui perceber o quanto eu fui desamparado anos depois. Depois de ter minha vida totalmente destruída e não ter tido ninguém para me ensinar a como me reconstruir. E eu perdi literalmente tudo mesmo, eu cheguei em um nível em que nem onde morar eu tinha mais e se eu não tivesse amigos para me abrigar na sala deles enquanto tentava me virar eu teria ido pra rua e muito provavelmente jamais me recuperado. Não estaria nem aqui mais.

E isso aconteceu comigo fazendo tudo dentro de estruturas de Mão Direita. Enquanto todas minhas divindades me chamavam para adentrar a Mão Esquerda e eu aceitava apenas estudar sobre, usando uma ou outra coisa, mas nunca indo de fato para ela pelo tanto de propaganda negativa que eu ouvia e pelas vivências negativas que eu já estava tendo. Eu não queria sair de um caminho que já estava difícil para outro que todos diziam que iria ser pior ainda. Ninguém em sã consciência iria querer isso. Mas o tempo, e a sabedoria das figuras divinas que me guiaram, me fizeram virar a Esquerda (para valer, não mais apenas flertando com) no momento apropriado. Eu já estava mais velho, mais calejado, já sabia me orientar diante do caos, e em pouquíssimo tempo a tempestade que eu já esperava ao invés de me puxar para baixo me impulsionou para cima pela primeira vez em quase uma década. Foi ali que eu parei de me afogar e comecei a nadar.

Em primeiro lugar, isso se deu sim pela experiência que eu já tinha adquirido na marra sobre como estruturar o básico. E eu coloco esse básico aqui. Leve-o extremamente a sério. O Guia tem textos sobre como estudar, sobre como identificar discurso nazi e facho enquanto você procura por livros e fontes, sobre como identificar grupos abusivos e falsos mestres para não cair em armadilhas e sobre como organizar uma prática inicial com cuidado. É só acessar.

Em segundo lugar, isso também se deu porque, pela primeira vez, eu parei de negar minha própria natureza e aceitei ser envolvido por um Caminho que era de acordo com ela e não contra. Então, a partir disso, minha jornada passou a ser real e profundamente um exercício de amor, de cuidado e de respeito que eu expresso por mim mesmo. E esse é o ponto central que muitas pessoas perdem.

Ambas as Vias, dentro do ocultismo, são caminhos espirituais extremamente sérios de desenvolvimento e de aprimoramento pessoal. O foco, em ambas, é a lapidação interna de seus adeptos. E, enquanto isso já é mais bem compreendido em relação a Direita, as pessoas ainda enxergam a Esquerda através de um viés assustadoramente pejorativo. Como se ela fosse apenas um meio para se conquistar poder terreno e dar vazão as próprias perversões e maldades ao invés de ser um caminho de evolução real e legítimo. A percepção do senso comum ainda é de que é apenas na Mão Direita onde existe evolução e aprimoramento pessoal, sendo a Esquerda algo para se flertar apenas num viés utilitário. Para se ter dinheiro, para se conquistar o amor do outro, para se vingar e por aí vai. Mas ambas são Vias de evolução.

E nenhuma evolução, em ambos os lados, acontece sem esforço. Sem provações. Sem sacríficos. A lapidação acontece sempre através da dor e do fogo, independentemente da Via. Mudando apenas a direção para onde você está se orientando, como já foi colocado aqui.

E, em questão de natureza e de lapidação interna, existem pessoas para ambos os Caminhos. Existem pessoas cuja natureza e os objetivos são alinhados a Direita. E existem pessoas cuja natureza e os objetivos são os da Esquerda. Se existem diversos Caminhos, é porque também existe diversidade no universo e em nós e isso nunca foi e nem nunca será algo negativo em nenhum nível. Você só saberá qual caminho é o certo para você conhecendo a si mesmo. Nisto, estude. Estude muito. Estude de tudo. E teste, experimente, viva as coisas que você sentir que precisar viver. As respostas vão te encontrar se você estiver em movimento atrás delas, ao invés de ficar parado apenas gastando energia mental pensando sobre. Se você quiser um pouco de ajuda eu ofereço um exercício aqui, e um jogo oracular específico que você pode testar aqui também.

Só cuidado para não ficar, assim como eu fiquei, por anos e anos com a respostas sendo passadas insistentemente sobre onde era o meu verdadeiro lugar por todos que me guiavam mas receando ir por causa da pressão dos outros. Se falarem para você que não existe evolução na Esquerda, que os daemons só vão querer seu mal o tempo todo, e que figuras infernais só vão te afundar na vida mande tomar no cu sem cerimônia alguma.

Agora que já acertamos aqui que a Mão Esquerda é sim um caminho evolutivo sério e que provações e ordálias naturalmente fazem parte do processo dela assim como fazem parte da Direita também, vamos para a próxima parte.

A Chama Negra

Quando falamos que um Caminho evolui algo, ele evolui o quê, de que forma, e para qual finalidade?

Evoluir é mudar. É cruzar gradualmente o espaço entre um determinado estado para outro, diferente do primeiro. É se transformar. E, na Mão Esquerda, o que é evoluído vai para além da nossa alma, que é o nosso espírito presentemente encarnado, indo diretamente para o cerne do espírito, que é o grande mistério que existe sobre nós e permanece existindo para além de qualquer uma das nossas encarnações. Neste cerne é onde se encontra a substância dos nossos espíritos em sua fagulha mais pura, é onde temos a fonte e a natureza da nossa existência. E é nessa fagulha que comumente dizemos, em diversas vertentes da Mão Esquerda, que é onde reside a Chama Negra.

Ela é a ideia de que aqueles que verdadeiramente são da Mão Esquerda o são no cerne mais puro e profundo das suas existências e de que, se você separar o espírito de um de seus adeptos de seu corpo, tirando-o do plano físico, e o dissecasse, no seu núcleo o que o habitaria seria uma chama de puro fogo negro, parte da natureza do próprio Adversário. Como se essa chama fosse uma gota do oceano que a própria Corrente do Adversário é, sendo todos seus adeptos partes do que a constitui em sua totalidade. Nesta concepção, nascemos sendo, cada um de nós, partes do Adversário. Assim sendo impossível nos “tornamos” de Mão Esquerda, mas sim apenas nos lembrarmos de que já o somos. Nos reencontrarmos com a nossa própria natureza. Voltarmos para o lar, voltarmos a nós mesmos. A Chama Negra é a dádiva do Adversário dentro de cada um de nós, não podendo ser retirada visto que é a nossa própria essência, mas sim podendo ser continuamente aprimorada no processo que chamamos de auto deificação.

Onde nos desfazemos de tudo que não é realmente nosso e alinhado a nossa verdadeira essência para nos retificamos da forma mais pura o possível ao que realmente e legitimamente somos, exaltando e deixando florescer nosso mais autêntico potencial, nossa Verdadeira Vontade. A visão e a manifestação do que esse potencial é em todo seu esplendor é o que buscado, sendo o que também é chamado de Deus ou Daemon Pessoal.

Esta é a busca, a Grande Obra, o transformar dessa fagulha divina que habita em todos nós (e que na Mão Esquerda é sempre adversarial por essência) de apenas uma partícula de potencial bruto até o máximo que ela pode se tornar. Atingir o que é chamado de “conversação” com o Daemon Pessoal para que o adepto entre em contato com qual é o seu potencial e possa se orientar com clareza e discernimento até ele não é uma tarefa fácil, assim como na Mão Direita a conversação com o Santo Anjo Guardião também não o é. Especialmente para o manifestar em plenitude na consciência do praticante. Pois estas são manifestações do nosso eu superior já divinizado.

As Ordálias

Tendo em consideração que esta é a Obra, cada vertente dentro da Mão Esquerda vai a conduzir de uma forma. Existem métodos e trilhas que são próprias do Satanismo, outras que são próprias do Luciferianismo e por aí vai. Inclusive, boa parte das vertentes da nossa Via hoje em dia possuem métodos próprios de conduzir seus adeptos pelo caminho iniciatico das Qliphoth, que são muito usadas para essa transformação e alquimia interna pelo viés adversarial da Esquerda. Estando elas como a trilha mais drástica e violenta que possuímos tanto pela sua natureza quanto pelo próprio processo que elas desencadeiam. Afinal, quando falamos de processos de lapidação e evolução, o trabalho não é e nunca poderia ser feito para ser simples.

Principalmente aqui, principalmente na Via Sinistrae. Estamos na Corrente do Adversário, na jornada antinomiana. A fagulha divina que possuímos dentro de nós é adversarial, e a nossa evolução é para aprimorá-la. Para nos tornarmos a manifestação viva e pulsante do Adversário que realmente somos em toda sua plenitude. A Alquimia Negra na qual trabalhamos nunca teria outro gosto além do gosto do nosso próprio sangue pois forjar o nosso caminho para além da ordem e das leis do Universo não só possui seus desafios próprios como gera uma reação de força contrária que se coloca contra o adepto durante todo o seu processo.

Para entender isso, imagine que antes de iniciarmos nossas jornadas todos fazemos parte, de certa forma, do intrincado tecido que forma a substância do Universo. Ocupando espaço de uma determinada forma e em uma determinada posição dentro dele. Ao darmos nosso primeiro passo nos movimentamos, saímos do lugar, e saímos do lugar para nos colocarmos num papel de oposição, no papel do Adversário. Isso causa um desequilíbrio momentâneo neste tecido que procurará se harmonizar novamente e para isso se colocará contra o praticante, pois a solução de menor esforço é que simplesmente volte ao antigo local aquilo que lá estava antes. É desta movimentação que vem as primeiras ordálias, as primeiras provações da jornada.

Essas são geradas pelo desconforto criado pelo movimento em si. As circunstâncias ao seu redor tendem a tentar te puxar de volta, a te impedir de continuar. É o primeiro baque instantâneo que tem como intuito provar se a sua vontade de continuar realmente é firme o suficiente para que você trilhe a jornada. O primeiro teste sempre é relacionado a sua resistência, é onde você descobre a firmeza que existe ou não na sua decisão e no seu comprometimento ao caminho que você escolheu, seja ele qual for.

E, por experiência própria e pelo que eu acompanhei de outros praticantes ao longo dos anos, esse período geralmente se estende por todo primeiro ano da jornada. Algumas pessoas demoram menos, outras estendem mais, mas num geral o primeiro ano é onde temos esse embate de resistência. Até pelo fato de que esse é o tempo que precisamos para estruturar e realmente engatar em um novo Caminho.

A sensação que esse processo proporciona é a de que entramos em uma queda de braço não só com nós mesmos, com nossa razão e motivações, mas com a própria vida num geral. Todos os problemas que puderem surgir para atrapalhar e para gerar questionamento surgirem. Desde problemas pessoais como a perca de amigos, de relacionamentos e com o surgimento de problemas familiares até mesmo a problemas de ordem prática como a perca de um trabalho, ter que se mudar para outra cidade ou local, enfrentar preconceitos, escassez, privações até mesmo problemas de saúde. Tudo o que pode acontecer para gerar desistência, acontece. Tudo que pode acontecer para testar se é isso mesmo que queremos ou não, acontece.

Pois neste período não temos só o tempo para estudar, para testar coisas e para semear as nossas bases mas sim para o próprio Caminho nos testar, da mesma forma como o testamos. E ele testa a nossa própria natureza, para ver do que é feito o cerne daqueles que se apresentam. De forma que apenas aqueles que realmente se alinham ao Caminho conseguem seguir em frente. As transformações e provas deste início, desta forma, são decisivas. É onde aqueles que realmente possuem a Chama Negra a despertam dentro de si e vencem suas primeiras batalhas para seguir em frente, e onde quem não deve prosseguir é espantado para longe.

Depois desse primeiro período de triagem, toda a vida daqueles que conseguiram prosseguir já estará alinhada para que eles deem seguimento a suas Obras pessoais. E é neste momento onde as Ordálias passam a serem muito mais focadas, muito mais duras e muito mais específicas. É onde elas começam de verdade, por assim dizer. Pois é com a real inserção do adepto no Caminho, tendo conquistado seu direito de entrada e demostrado sua aptidão, que tudo realmente começa. E podem levar anos até que esse momento chegue, sendo o desenvolvimento da nossa Obra algo que durará pelo resto das nossas vidas. Então, nunca pense que a Mão Esquerda enquanto Via de evolução pode ser trilhada para se obter resultados e poder rápidos, pois ela não pode. Ela é o aprimoramento constante dos nossos espíritos na Corrente do Adversário, ela é um compromisso definitivo com aquilo somos e aspiramos ser em eterna progressão.

Somos tanto capacitados como testados pelos guias e pelos professores do nosso Caminho, que são figuras infernais e adversariais, para nos desfazermos de tudo que não reflete quem realmente somos em nossa jornada até a nossa Apoteose. As circunstâncias ao nosso redor, desta forma, sempre passarão a refletir nosso trabalho espiritual e a nossa Obra, para o bem e para o mal, até que toda a nossa vida seja a Obra em si. Em questão de processos espirituais ou falhamos em tudo ou somos bem sucedidos em tudo. O sucesso nos alavanca em todas as instâncias das nossas vidas, e as falhas nos destroem, nos apodrecem de dentro para fora até que consigamos as superar. Então, nunca pense em assumir para si uma trilha ao qual você não esteja disposto a se doar completamente, a se deixar transformar completamente. Pois este é o processo. Esteja nele por inteiro, ou não esteja.

Até mais!

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