Primeiros passos – Sobre apadrinhamentos

Fonte: Arquivo pessoal

Dando continuidade a nossa conversa sobre Guias dentro da Mão Esquerda, cujos primeiros textos você pode ler aqui e aqui, hoje abordaremos os apadrinhamentos. Tendo em vista qual é a natureza do relacionamento que existe dentro da Via Sinistrae entre nós e as figuras espirituais que fazem parte de sua Corrente, temos nos apadrinhamentos os elos mais duradouros e profundos do Caminho. E, se você transita por meios de Esquerda, muito provavelmente você já ouviu sobre o tema em alguém dizendo algo sobre daemons ocupando o posto de patronos, matronas, guias ou guardiões de certas pessoas.

O conceito, naturalmente, pode despertar muita curiosidade. Afinal, é uma união interessante de palavras. A maioria de nós cresceu com a visão cristã sobre demônios, e sobre como eles são figuras apenas negativas. Ouvir que outras crenças podem ter visões diferentes sobre seres que antes pensávamos serem apenas nocivos a vida humana, com esses espíritos até mesmo atuando como guardiões e guias de alguém, é naturalmente instigante.

Em primeiro lugar, é bom separar os termos. Afinal, existe uma diferença entre daemons e demônios cristãos. Daemon é, em si, uma palavra em latim que se origina do grego daímôn, que é de onde temos demônio. Mas, muito longe de se referir aos conceitos cristãos, daemons eram espíritos de índole neutra e flexível que poderiam estar associados a natureza ou a certas facetas do temperamento humano, fazendo a ponte e a intermediação entre nós e o espiritual. Foi apenas com os processos de dominação cristã que a Igreja pegou o termo para dar a ele conotações negativas, transformando todos os espíritos, seres e divindades de quaisquer culturas e religiões externas a si como os demônios da sua própria mitologia. Muitos dos daemons da Goetia, por exemplo, nada mais são do que versões demonizadas de entidades e divindades de culturas pagãs mais antigas.

Então quando se fala, na Mão Esquerda, sobre esses seres, existe uma preferência natural por se usar o termo daemon como uma forma de demarcar essa diferença e dizer que não trabalhamos dentro da lógica cristã que foi imputada a eles. Muitos podem ainda usar a palavra demônio mesmo, claro, mas mais por vício de linguagem e costume. Aqui, nosso raciocínio é sempre distinto do cristão.

Em segundo lugar, é bom nos orientarmos sobre o local de onde estão vindo os conceitos que discutimos. E, no caso, aqueles que mais irão falar sobre este tipo de relacionamento com os daemons são satanistas teístas e demonólatras. Não apenas num sentido de que esses espíritos os protegem, mas no sentido de um apadrinhamento espiritual mais profundo para seus desenvolvimentos na Corrente. Em seu livro The Complete Book of Demonolatry, S. Connolly nos fala um pouco mais sobre o tópico (p.19):

“Each practitioner of Demonolatry chooses what is known as a
‘counterpart’ Demon, or a Demon that defines or identifies with the
attributes of the practitioner. This becomes the individual’s matron or
patron deity (depending on gender association). All Demons become
secondary to this particular Demon. For those practitioners who border on
what might be called theistic Satanism, this Demon may or may not be
Satan. In Demonolatry, Satan is the “fifth element,” or the source of all
other energies. In other words, Satan is the Whole and every other Demon
is simply a part of the whole. Each person, animal, plant, and thing that
exists in nature is a part of the whole [the divine] as well. Because of this,
there are no Demons more “powerful” than others.”

“Cada praticante da Demonolatria escolhe o que é conhecido como sua
‘contraparte’ demoníaca, um demônio que o define ou um demônio que se identifica com os
atributos do praticante. Este demônio se torna a matrona do indivíduo, ou sua
divindade padroeira (dependendo da associação de gênero). Todos os demônios se tornam
secundários a este demônio em particular. Para aqueles praticantes que são próximos com
o que pode ser chamado de satanismo teísta, este demônio pode ou não ser
Satã. Na Demonolatria, Satã é o “quinto elemento”, ou a fonte de todas as
outras energias. Em outras palavras, Satã é o Todo e todos os outros demônios
são simplesmente uma parte deste todo. Cada pessoa, animal, planta e coisa que
existe na natureza é uma parte do todo [o divino] também. Devido a isto,
não há demônios mais “poderosos” do que outros.”

Em seu texto, S. Connolly aborda como, ao longo da trajetória espiritual dos demonólatras, o apadrinhamento entre seres humanos e daemons acontece. E estes espíritos, se colocando como padrinhos de seus escolhidos, são seus maiores guias e professores ao longo de suas jornadas. A relação se pauta em muito respeito, garantindo ao apadrinhado auto conhecimento, crescimento pessoal, proteção e força em sua jornada rumo ao desenvolvimento da sua própria natureza divina interna. Afinal, como a autora deixa claro, a demonolatria defende o auto empoderamento e a liberdade pessoal, assim como o crescimento espiritual de seus praticantes. Com cada um deles descobrindo o próprio propósito, e sua própria natureza divina dentro da Corrente do Adversário.

E como um processo, parte do desenvolvimento espiritual dentro da religião que a demonolatria é, o apadrinhamento não é algo que nasce com o praticante. É algo que é elaborado passo a passo, conforme o praticante se aprofunda em seu caminho. Existe todo um processo de pesquisa, estudo e treinamento envolvidos até que se ache o padrinho ou madrinha de alguém. O demonólatra se apresentará e trabalhará com diversos daemons até que o relacionamento com um deles se firme mais do que com os outros. E isso é algo importante de se ressaltar aqui, é um relacionamento. E, como em qualquer relacionamento, as coisas não se desenvolvem do dia para a noite mas sim com o tempo. O seu melhor amigo não virou o seu melhor amigo do nada, não foi? Vocês tiveram uma história juntos. Da mesma exata forma, se você é casado, você não se casou em cinco minutos. Você não chegou para o seu marido, ou esposa, no dia em que vocês se conheceram e já se apresentou num “oi, meu nome é fulano e eu quero casar com você”. Presume-se que primeiro vocês se conheceram, ficaram amigos, depois começaram a namorar e por aí vai.

Qualquer relacionamento entre seres humanos e figuras espirituais segue o mesmo princípio. Se você escuta falar de um daemon e se interessa por ele a primeira coisa que você fará será pesquisar sobre ele. Você estudará todas as fontes que puder achar e se preparará, através do estudo, para tentar um primeiro contato. Então, é como conhecer uma nova pessoa. Vocês podem se dar bem logo de cara, podem precisar de um tempo até se entenderem perfeitamente ou podem não se dar bem de forma alguma. É o andar da carruagem que vai dizer.

E estes relacionamentos se firmam para o desenvolvimento espiritual do praticante. Para que ele aprenda e se desenvolva através das provas, testes e do trabalho do seu próprio caminho. Tendo, ao seu lado, um guia no qual confiar. Que o equilibrará, o ajudará, o ensinará, o protegerá e também o instigará através de provações a estar sempre em movimento, sempre avançando, nunca ficando por tempo demais na zona de conforto. Afinal, como já falamos, a atuação de um Guia na Via Sinistrae se dá através da sua natureza adversarial.

Dentro da demonolatria, o processo de achar o daemon certo para esse papel pode levar anos e não é algo para ser feito levianamente, existindo um ritual apropriado de dedicação a se fazer para firmar o apadrinhamento de forma correta. Isso não impedirá que o praticante tenha outros mentores ao longo da sua jornada, mas colocará seu patrono como seu principal professor e disciplinador ao longo da vida.

Dentro do satanismo teísta, ou tradicional, se vê a mesma coisa. Já ouvi de praticantes específicos que Satã, como figura principal, que os designou seu patrono/guardião. Não mudando, nisso, todo processo de estudo, esforço e dedicação envolvidos no processo. Afinal, não é como ganhar uma vantagem mas sim como receber uma responsabilidade. Consigo mesmo, com sua própria evolução e desenvolvimento em seu caminho espiritual, e com o daemon em si.

Afinal, como continuamente ressalto, os guias espirituais que possuímos dentro da Mão Esquerda não são como os que temos na Mão Direita. Ainda mais se falamos de daemons, que não são figuras espirituais que são simples ou fáceis de se lidar. Cada daemon é um universo a ser explorado. Eles são complexos, intensos, e desafiadores. Definitivamente não são todas as pessoas que se dão bem com eles. Com suas contrariedades, com suas provocações, e com os confrontos que eles invariavelmente colocam na vida daqueles que lidam com eles. Estes seres sabem jogar como poucos sabem. São forças selvagens e indomáveis que existem muito antes da humanidade pensar em se formar. Eles são manifestações brutas de uma energia que nunca será domesticada. São faces do Adversário. Assim como devem se tornar aqueles que com eles se alinham.

Agora, respondendo duas dúvidas que eu já ouvi muito:

Eu ouvi sobre descobrir meu daemon patrono/guardião através da minha data de nascimento. Isso existe?

Dentro dos estudos da Kabbalah nos deparamos com o Shemhamphorasch, o conjunto dos 72 nomes de Deus. Tendo três letras cada, eles se formam a partir dos desdobramentos do Tetragrammaton (YHVH) em 72 partes. Estes nomes se derivam dos versículos 19, 20 e 21 do Capítulo 14 do Êxodo. E, em sua original escrita hebraica, cada um destes versículos possui 72 letras. Se originando destes nomes possuímos 72 anjos e, posteriormente, a eles foram associados cada um dos 72 daemons da Goetia como suas contrapartes. Existe sim a aplicação destes anjos, e de suas contrapartes, aos dias do ano. Assim como existe esta aplicação de regência aos signos do zodíaco, as estações do ano e por aí vai. Isso significa especificamente que o anjo ou daemon do dia do seu nascimento é o seu anjo/daemon da guarda ou um patrono seu? Não. O máximo que podemos falar aqui é que, pela afinidade energética do dia, talvez você tenha uma facilidade maior para se aproximar dessas entidades. Mas o fato de um anjo/daemon reger o dia no qual você nasceu não naturalmente os relaciona a você de nenhuma forma específica. Você pode tentar uma aproximação com eles se desejar e se tiver o estudo adequado para tal. Mas não é uma obrigação de forma alguma.

Eu ouvi que todos nós nascemos com um daemon guardião. Isso é verdade?”

Quando falamos daquilo com o qual nascemos falamos de hereditariedade e de heranças espirituais. Você sabe de onde vieram os seus antepassados? Quem eles foram, quais são seus países e culturas de origem e o que praticavam? Todos dons, habilidades, afinidades e características com as quais você nasceu vieram deles. Se você não veio de uma família que se relaciona ou se relacionava com este tipo de espíritos é muito difícil que você tenha um deles atrelado a você desde o seu nascimento. Nós só nascemos com aquilo que a nós é passado através dos nossos laços de sangue. Se você, ao longo da sua vida, se dedicar a Mão Esquerda quem sabe você não possa passar a sabedoria que você acumular ao longo dos anos aos seus filhos e netos? Você pode não ter recebido essa herança, mas nada te impede de ser o começo dela para as próximas gerações que virão.

Pense nisso e até mais!

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