A Corrente do Adversário

Páginas do livro A Bíblia do Adversário de Michael W. Ford com ilustração do artista Jose Gabriel Sabogal e carta Ás de Paus do Goetia – Tarot in Darkness de Fabio Listrani – Acervo Pessoal

Independentemente de onde você se alinhe dentro da Mão Esquerda uma coisa é certa: todos aqueles que trilham a Via Sinistrae a trilham pela Corrente do Adversário.

Mas o que isso significaria, exatamente?

Quando buscamos pelas definições básicas que temos em nossos dicionários vemos que adversário é aquele que é contra algo ou alguém. É a figura do antagonista. Aquele que entra em combate contra algo, que é capaz de se opor e que ocupa o posto do rival. Através das histórias e mitologias do mundo sempre encontramos pelo menos uma figura a carregar esse posto. Se marcando pela sua insatisfação e rebeldia, o adversário caracteristicamente vai contra as normas, sendo um desafiador da ordem e aquele que traz a força opositora, os desafios e as dificuldades. Sem ele, não temos movimento e nem sequer evolução pois ele está sempre no cerne do motivo pelos quais as coisas são retiradas de seus lugares, questionadas, testadas e por fim transformadas.

O adversário não precisa necessariamente ser uma figura vilanesca. Mas ele geralmente é enquadrado como por trazer incômodos a tona. É comum que ele traga e represente tabus, figuras marginalizadas, temas delicados e coisas que as pessoas tem dificuldade para lidar. A existência dele obriga as figuras ao seu redor a se mexerem e a encarem coisas que elas não gostariam, fazendo mudanças que de outra forma elas não fariam, revendo seus conceitos para que exista um crescimento para além da zona de conforto. Assim, a figura do adversário sempre é desagradável e sempre traz desconforto. Por mais que esse desconforto tenha, em si, uma função fundamental no andar das narrativas em que ele se encontra.

Como vimos dentro da própria definição do que é a Mão Esquerda, é nela que entramos em contato com essas forças de oposição. Pois é nela que saímos daquilo que é tido como seguro, socialmente estabelecido e aceitável para lidar com as nossas próprias sombras, medos, preconceitos e defeitos. Lidar com a nossa própria escuridão interior, com nossos traumas e processos de auto sabotagem nunca é fácil. Assim como não o é se abrir para questionar o mundo ao nosso redor, formulando nossa própria visão independente, mesmo que isso signifique destoar dos demais. O caminho da Esquerda sempre é o caminho da separação e do antagonismo. E isso, por definição, nunca é fácil.

Se alinhar a Corrente do Adversário é se alinhar a energia de oposição e de inconformidade do universo. E a responsabilidade que trilhar esse caminho impõe é alta. Nele, sempre temos que lidar com obstáculos, com resistências, com dificuldades. Avançar onde cada passo se dá através do questionamento e do enfrentamento é solitário e, muitas vezes, ingrato. O exercício de escolher com maturidade em quais batalhas entramos e, principalmente, em como nelas entramos é constante. Afinal, o dom do Adversário não flui através de nós para sermos rebeldes apenas pelo ato de se rebelar em si, sem nenhum propósito maior, mas sim para sermos a força que expõe o que é mentira, que denuncia a hipocrisia, que rasga o véu das ilusões e do caos e que traz evolução através da adversidade.

Colocando o dedo nas piores feridas. Denunciando as desigualdades. Se levantando para lutar contra preconceitos, para ser a voz daqueles que não podem se defender, jamais batendo naqueles que estão abaixo mas sim cuspindo diretamente na face dos que estão acima. Tendo a coragem de dizer que o rei está nu, que ele é um imbecil, assim como todo o sistema que o mantém em sua posição. Desafiando toda autoridade. Sendo a voz mais irada e agressiva da razão.

A Corrente, como um caudaloso rio, flui através de cada ato daqueles que não se conformam. Através de cada palavra proferida pelas bocas daqueles que sabem fazer as perguntas certas. Através daqueles que se recusam a dar a outra face. Através daqueles cuja simples existência já é o suficiente para provocar rebuliço.

Não existe uma única figura adversária que seja a fonte desta Corrente. Seu fluir faz parte natural da vida. Ela passa por todos nós quando precisamos sair da inércia. Ela nos faz mudar. Nos desfazendo de quem fomos previamente para nos reconstruirmos em novos seres. Sem ela, nada iria para frente. Nada se transformaria. A adversidade é a mãe de todos os processos evolutivos do nosso universo. Ela está no gosto amargo em nossas bocas, na insatisfação que nos leva a luta, nas revoluções que tudo mudaram e na fúria do coração daqueles que, como dizemos, preferem reinar no inferno do que servir no céu. Suas diversas faces podem ser encontradas em todas as culturas do mundo. Nas figuras mitológicas de oposição, no grito dos grupos marginalizados, nas lutas sociais e nos bodes expiatórios de cada grupo e de cada família.

Vemos o brilho de suas águas turbulentas no olhar raivoso daqueles que são desumanizados simplesmente por serem quem são. Ouvimos seu murmúrio nas vozes que gritam por justiça e por mudança. E olhamos através delas quando nos permitimos enxergar quais processos demonizam certas figuras enquanto outras são louvadas.

Dentro dela, como é de se supor, não entramos em contato com figuras que carregam o posto e os atributos da Corrente (como Satã, Lúcifer, Azazel, Samael, Ahriman, Az, Lilith e muitos outros) com a mesma perspectiva do senso comum e sim como símbolos codificados da Corrente. E, se somos teístas, como manifestações puras da energia do Adversário que, se estudadas e decifradas corretamente, podem trazer conhecimentos e força para além das aparências.

Em nenhuma das diversas vertentes da Mão Esquerda se acredita na cosmologia cristã como os cristãos nela acreditam. O Adversário é uma força anticósmica, acasual, que age e se manifesta como os impulsos motivadores, inspiradores, desafiadores, destruidores e criativos dentro de cada ser humano e na natureza como um todo. Ele é a pulsão da Corrente que flui através de todos nós como o instinto primal de vencer as adversidades e evoluir. E, se alinhar a ele, é sair dos limites do status quo para a subversão que o altera. Nos levando adiante. Nos fazendo crescer, amadurecer e progredir.

Até mais!

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