Primeiros passos – Como identificar discurso fascista dentro da Mão Esquerda

Fonte: Arquivo pessoal

Começar a estudar sobre espiritualidade, principalmente no que se refere as vertentes pertencentes a Mão Esquerda, não possuindo conjuntamente educação política pode te fazer, sem saber, absorver conteúdos e ideias extremistas. Por isto, aqui no blog, deixarei este pequeno guia de como identificar ideias e discursos fascistas em textos, livros ou falas dos autores do nosso nicho. Guarde as informações aqui contidas de forma vívida em sua mente e amplie sua educação para além daquilo que aqui for apresentado.

O que é o fascismo

Quando falamos de fascismo estamos falando, por definição, de uma ideologia política baseada no ultranacionalismo e no autoritarismo. Ela se caracteriza pelo uso de poder ditatorial, repressão da sua oposição através de força militar e de uma forte arregimentação tanto da sociedade quanto da economia. Atualmente o fascismo se divide e se diversifica entre os diversos ramos dos movimentos da extrema-direita. Porém, seus pontos vitais sempre são facilmente identificáveis.

Neles temos a presença constante de um nacionalismo extremo, desprezo pela liberdade política e pela democracia, a crença de que existe uma elite social natural e a defesa dessa elite acima do bem estar comum. Assim como encontramos uma constante preocupação oriunda da ideia de que existe um declínio moral e cultural ocorrendo na sociedade, com a glorificação de um passado mítico, da violência e do totalitarismo como fatores redentores. O fascismo, economicamente, defende a autarquia. Se opondo tradicionalmente ao liberalismo e ideologicamente ao comunismo, ao socialismo e ao anarquismo.

Indo por partes em seu discurso, temos:

1 – O estabelecimento de um passado mítico

A ideologia fascista constantemente invoca a ideia de que existiu um passado puro e moralmente digno, que foi tragicamente destruído pela corrupção ou decadência trazido por aquilo que é considerado diferente e externo. Aqui temos as ideias de pureza racial, assim como as ideias de pureza religiosa e cultural. O medo da diferença neste item e nos próximos é crucial. O culto a tradição e a rejeição a tudo que é considerado moderno só pode existir através da imposição do temor contra o outro. Assim como contra tudo que é considerado externo, diferente e desconhecido.

2 – O ultranacionalismo

Tendo estabelecido uma noção romântica de passado, os mitos sobre um possível renascimento nacional se tornam possíveis. Aqui a noção de nação é passada como se fosse uma entidade única e orgânica, que une as pessoas em função da sua ancestralidade em comum. Então, após a noção da pureza perdida de um tempo passado, o fascismo cria um senso de identidade tribal exaltando os conceitos de raça e ancestralidade como base para um novo sentido de unidade, força e pureza.

3 – A natureza da hierarquia

No próximo passo do pensamento fascista temos hierarquias sociais que são impostas pela própria natureza, perante a superioridade moral de seus indivíduos. A ideia do passado perdido e da tribo se une a noção de superioridade a ser resgatada como um direito de nascença. Isso torna a noção da igualdade, dentro da lógica fascista, como contrária as próprias leis do mundo natural que coloca certos indivíduos espontaneamente acima dos outros. É comum vermos a noção de que homens estão acima das mulheres por natureza intrínseca, por exemplo. Assim como a ideia de que os membros de determinadas nações ou culturas estão acima do resto do mundo e, por causa disso, deveriam governar por direito.

4 – A vitimização

Seguindo então a lógica fascista, as classes e indivíduos dominantes seriam vitimados ao serem obrigados a compartilharem direitos a cidadania e poder social com grupos externos ou minoritários. Aqui entram as acusações de que determinados grupos não são dignos de assistência, ajuda ou acesso a recursos sociais. Nisto temos o ataque e a retirada da humanidade a qualquer grupo considerado externo ao grupo dominante. O que é perigoso para todos que são tidos, por qualquer razão, como diferentes do que é imposto pela norma. Essas diferenças podem ser étnicas, religiosas, culturais ou ideológicas.

5 – O apelo ao irreal

Nisto, o fascismo substitui o diálogo fundamentado, o livre acesso a informação e a educação por apelos emocionais que, quando bem sucedidos, incutem temor e raiva, deixando seus ouvintes com a vívida sensação de perca e de desestabilização. O objetivo é criar o sentimento do nós versus eles para formar um quadro de ressentimento e desconfiança contra aqueles que são colocados no posto de serem os outros, os diferentes, os inimigos.

É nisto que o discurso fascista procura desvalorizar a educação. Se você não tem acesso a diferentes perspectivas, a pluralidade de ideias e a especialização que a educação permite você não conseguirá notar as falhas no pensamento que te é apresentado e só te sobrará uma visão exclusivista, alheia a qualquer descrição precisa da própria realidade. Teorias da conspiração cada vez mais alarmantes são passadas no lugar de análises racionais sobre mazelas sociais com o alerta de que você não poderia procurar a averiguação daqueles fatos em locais externos por eles não serem confiáveis, o que te radicaliza, poda e distorce a sua visão e percepção de mundo.

6 – O apelo a ansiedade sexual

Como uma ideologia política que coloca a família nuclear e patriarcal como base temos no fascismo também o pânico natural contra tudo que se desvia desse arranjo. E é importante notar que este pânico é gerado principalmente contra tudo que ameace os papéis masculinos tradicionais ou questionem o local do homem enquanto sujeito no mundo. Acusações contra a imoralidade sexual, principalmente contra a liberdade sexual feminina, surgem junto a homofobia e a transfobia com muita frequência. É comum que exista um culto a masculinidade ou, no mínimo, a exaltação a qualidades tidas como viris em oposição as tidas como femininas dentro deste tópico. A juventude é glorificada e tida como precisando ser purificada da promiscuidade da cultura moderna, com foco na formação de núcleos familiares que tenham como principal função a reprodução para o nascimento de indivíduos superiores. É comum, por causa disso, o cerceamento da liberdade reprodutiva feminina.

7 – O totalitarismo

Em um estado democrático, leis são tidas como instrumentos para garantir que todos os cidadãos de uma sociedade sejam tratados de forma igual e justa, garantindo o respeito mútuo entre as pessoas. Por outro lado, perante o fascismo, a igualdade é um conceito irreconciliável. As leis, então, são feitas para separar aqueles que são tidos como a elite superior, e por isso governantes naturais por direito, daqueles que devem apenas servir. Um novo Estado totalitário, composto pela elite e encabeçado por um líder carismático que possua alto apelo popular, é apresentado como solução a todos os problemas. Com o uso de forte repressão militar como um meio para perseguir, segregar e eliminar qualquer oposição ou pensamento dissidente.

8 – E a violência como redentora, junto a formação do Novo Homem

A violência e a retaliação, dentro da visão fascista, é um direito dos fortes sobre os fracos. Aqui temos a glorificação da guerra, e da figura do guerreiro, como uma forma de compensação. Se você sente um profundo medo do outro, acredita que sua cultura e sua superioridade foram retirados de você, e te fazem acreditar que o uso de força bruta contra os seus inimigos irá provar o quanto você é sim superior o uso dessa força se torna um escape compensatório para todas as inseguranças que colocaram dentro de você. E fazer parte de uma grande unidade social violenta pode ser uma retomada para o senso de poder que pretensamente lhe foi tomado.

É comum, dentro do imaginário fascista, que após a instituição do novo Estado totalitário e do domínio social ser garantido, surja o conceito utópico do Novo Homem. Um novo tipo de ser humano, ideal, superior e forte, que substitua e sobrepuje a condição humana atual. Esse conceito não é exclusivo do fascismo, sendo usado também em outras vertentes ideológicas e religiosas. Mas nele temos a ideia deste novo sujeito sendo especificamente imune a suposta mentalidade de rebanho das sociedades atuais, repudiando as normas, sendo mestre de si mesmo e capaz de iniciar uma nova era humana. Este ser, perante o fascismo, é uma figura de ação, viril e máscula. Vindo ao mundo geralmente através de processos de eugenia. Podendo ser intercambiável, em algumas interpretações, com o Novo Homem transumanista, que aprimora a humanidade unindo o biológico ao cibernético.

Agora que já vimos os principais pontos do discurso e da ideologia fascista, como os reconhecer?

Em meios religiosos e esotéricos é raro que discursos políticos sejam apresentados como tal. Eles são diluídos, disfarçados e suavizados como conceitos espirituais. O intuito é que você não encare nada como abertamente político e sim como uma questão de crença. Religiões e formas de culto, assim, são meios sutis mas muito eficientes de doutrinação tanto sobre pequenos grupos quanto também sobre grandes massas.

Apesar de ser fácil achar críticas e questionamentos referentes a isso em meios esotéricos e espiritualistas, muito para criticar especificamente o cristianismo, falta a noção de que toda crença espiritual pode trazer em si pontos ideológicos políticos, e que isso inclui o neopaganismo, o ocultismo e a Mão Esquerda.

A presença da extrema-direita no ocultismo e no esoterismo está longe de ser um fenômeno recente. Teorias da conspiração clássicas oriundas do nazismo, discursos que promovem noções de eugenia e revisionismo histórico para criar conceitos de passado mítico são comuns em diversas vertentes, nunca sendo combatidos ou desmascarados justamente pelo verniz de crença espiritual que carregam.

Dentro do neopaganismo nórdico, por exemplo, a presença da extrema-direita é marcante através da Ariosofia de Guido Von List e de Jörg Lanz von Liebenfels. A Armanen-Orden, que cuida do legado intelectual de Von List, segue ativa e bem estabelecida até hoje. Dentro da Mão Esquerda, o Satanismo possui diversas organizações abertamente alinhadas ao fascismo como a ONA (Order of Nine Angles), que carrega dentro do seu corpo de crença o incentivo ao sacrifício humano, ou assassinato ritual, como um meio de eliminar aqueles que são considerados como inferiores e mais fracos. Mas nem todas as organizações e figuras são tão obvias como as aqui citadas.

Então, antes de pegar qualquer texto, livro ou material organizacional procure o histórico de seus autores e participantes. Quem eles são? Qual é a jornada deles no meio? Com quem eles se aliam? Eles se baseiam e disponibilizam quais fontes e quais referências em seus trabalhos? Procure informações, cheque suas associações, as entrevistas que já deram, qual o rosto que eles tem. Se for difícil saber quem um autor é e de onde veio fique alerta. Nunca coloque figura alguma em um pedestal.

Perceba, nos discursos e textos, se qualquer um dos oito pontos da ideologia fascista aqui mostrados são citados, direta ou indiretamente. A maior parte dos nomes da Mão Esquerda se colocam como sendo contrários a qualquer tipo de política autoritária ou preconceito, no entanto, nas mesmas obras onde isto é dito você pode encontrar:

  • Noções de elite natural: Se você já leu que satanistas ou luciferianos são superiores, moral ou intrinsecamente, você já se deparou com o conceito de elite natural. Principalmente se, em comparação, o resto da sociedade é retratado como inferior. Colocações como chamar pessoas de ”animais de rebanho”, possuidoras de uma ”mentalidade de escravo”, para colocar satanistas e luciferianos como predadores versus presas são pertencentes ao velho discurso de nós os superiores versus o outro inferior. E apresentam nada mais do que uma dicotomia rasa e sem nenhuma profundidade em relação ao mundo, com o propósito de criar uma sensação de superioridade imaginária e distorcida.
  • A defesa do fim do ”mito da igualdade”: Se você já leu alguma variante desta frase, principalmente seguido por alguma referência ao ”machado da força” (que remete ao símbolo do fasces romano), você entrou diretamente no ponto da vitimização. Direitos sociais não nivelam nenhuma sociedade por baixo. Acreditar que os fortes são feitos de vítimas por existirem leis que garantam a igualdade social entre todos é um discurso de velho e preguiçoso contra minorias sociais que se apoia no irreal. Principalmente se este discurso estiver defendendo a criação de barreiras intransponíveis entre os pretensamente fortes e aqueles que eles consideram fracos, com o estabelecimento de uma nova ordem, onde também entramos no ponto do totalitarismo.
  • ”Satanistas/Luciferianos nascem, não se fazem”: Se você já leu isso, você já leu sobre eugenia e sobre a criação do Novo Homem. A noção de procriar uma nova raça foi largamente usada pelo nazismo e ainda é divulgada em muitos meios de Mão Esquerda aliados a extrema-direita, substituindo apenas o termo ”nova raça ariana” por variantes como ”nova raça satânica” e similares. Não compre nenhum discurso de que a humanidade está se tornando débil e frágil por causa de uma suposta degradação moral que amaldiçoa as novas gerações com patologias sociais e doenças hereditárias e que apenas satanistas ou luciferianos seriam livres da entropia que adoece as grandes massas, sendo assim aqueles que irão parir uma nova qualidade superior de seres humanos.
  • Permissividade com grupos assumidamente extremistas: Se você ver grupos como o ONA serem descritos como apenas controversos, porém revolucionários, fortes e grandiosos, você está consumindo informação de pessoas e grupos que são tolerantes as suas ideias. Nunca se sinta confortável se sentando na mesma mesa onde também estão pessoas que podem relativizar sacrifício humano, em prol da sua própria segurança.
  • Discursos moralistas com alto apelo a ansiedade sexual: Apesar da vasta maioria dos autores e grupos de Mão Esquerda se colocarem contra o discurso da mulher como sexo inferior, perceba se as mesmas pessoas que dizem ser contra a misoginia também falam sobre o único amor verdadeiro ser o gerador, entre um homem e uma mulher, com o conceito de que existe um processo evolutivo orgânico que está perdendo a qualidade aos poucos pela imoralidade da cultural atual. Aqui entramos novamente na eugenia. E se ela e o pânico moral são defendidos a posição da mulher naturalmente é reduzida. Termos como ”vulgaridade da escória” levantam alertas vermelhos. Assim como discursos de como a sexualidade deve ou não ser a fim de não conter ”a absurda vulgaridade e grosseria vista nas massas”. Existem muitos textos que começam louvando o poder sagrado feminino, contra o puritanismo religioso, e terminam criticando a liberdade sexual como uma promiscuidade causadora de vícios e decadência moral, não tendo lugar na vida do ”ser humano superior”.
  • E teorias da conspiração junto a distorção de fatos históricos: Se você já leu que Lúcifer é um antigo soberano extraterrestre que realizou experiências genéticas entre criaturas repitilianas intelectuais de Órion e seres humanos você já caiu no beco das teorias conspiratórias com fundo antissemita. Revisionismo histórico, principalmente sobre o período das Inquisições, devem levantar as suas suspeitas. Não absorva nenhum tipo de antissemitismo ou islamofobia sobre o falso pretexto de apenas criticar o monoteísmo.

Reconheci discurso fascista, e agora?

Avalie. Foi em um grupo? Então se retire. Foi em algum texto ou livro? Passe um bom pente fino em seu conteúdo. Existem autores que irão se dizer contra qualquer tipo de preconceito, totalitarismo e extremismo e três páginas depois defenderem todos os pontos da ideologia fascista como se estivessem num bingo. Existem outros que irão apenas gostar muito da ideia de nós os predadores versos as massas que são um pretenso rebanho e vão parar por aí. Esse discurso de predador versus presa é muito difundido inclusive em correntes vampíricas de espiritualidade predatória até como estética de nicho. Se atente ao nível real de desprezo contra o outro que é colocado e se outros pontos ideológicos também são incluídos.

Leia criticamente, questione e procure diversificar suas fontes. Existe muito mais dentro da Mão Esquerda do que as opiniões e as obras dos mesmos caras brancos e calvos de meia idade pra cima. Consuma conteúdo escrito e feito por pessoas negras, por mulheres e integrantes da comunidade lgbt. Aposte na pluralidade de ideias para enriquecer sua visão de mundo e nunca pare de crescer, se desenvolver e se educar.

Até mais!

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4 comentários em “Primeiros passos – Como identificar discurso fascista dentro da Mão Esquerda

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